Minha esposa e eu vivíamos um
amor risonho e doce nos idos de 2003. Éramos recém-casados após
dois anos de namoro e um curto período de noivado. Ambos contávamos
trinta anos, tínhamos bons empregos e nossos currículos incluíam
um mestrado no qual nos conhecêramos e um doutorado que marcou o
início de nosso relacionamento, após longos anos de acaloradas
discussões. Eu era um professor neoliberal empedernido que pensava
que a educação dependia de estudantes empenhados e de professores
com grande conhecimento para transmiti-lo. Ela odiava a palavra
transmissão e tinha um discurso pós-moderno que incorporava o
marxismo, os estudos culturais e tudo que colocava os estudantes
burros e preguiçosos como vítimas de um sistema opressor e de uma
escola excludente. Divergíamos em tudo até eu vê-la sorrir e
perceber que, embora eu nunca concordaria com ela em relação a
políticas educacionais, eu sempre quereria fazê-la sorrir daquela
maneira.
Apaixonei-me subitamente e não
perdi nem um segundo em convidá-la para sair. Disse-lhe esta noite
vamos deixar as polêmicas de lado e falar sobre nós, eu mal sei seu
nome e passei os últimos anos discordando de você. Ela se mostrou
amável e simpática. Nada que se assemelhasse à militante das
aulas. Eu levo a pós-modernidade a sério, disse ela, inclusive no
que diz respeito a mim mesma, não sou uma só, não sou única,
indivisível e especial, sou várias e gosto de poder ser assim,
múltipla. E se abriu em um sorriso que me convenceu de que, ao
contrário do que ela dissera, era único e a fazia absolutamente
especial.
Casamos em um sábado à tarde em
uma praça no centro da cidade. Não havia padre nem juiz, somente
amigos. Ela convidara os alunos, e eles compareceram às centenas.
Cada um trouxera bebidas, biscoitos e bolos caseiros. Eu vestira meu
melhor terno e ela chegou com um vestido branco de vinte reais, um
pequeno buquê de margaridas e uma fita no cabelo. Em todo o mundo
nunca houve noiva mais bela. Antes de beijá-la, duas lágrimas
desceram dos meus olhos e eu sussurrei olhando-a na alma eu te amo de
todo o meu coração. Ela ergueu-se na ponta dos pés que vestiam uma
sapatilha rasteirinha e disse a ti entrego hoje meu corpo e meu
espírito em sinal do meu amor.
Quando Miriam engravidou fiquei
como louco. Abracei-a apaixonadamente e a ergui no ar girando com ela
em êxtase, transportado de alegria. A notícia alcançou-me dois
meses depois de nos casarmos. Liguei para meus pais eufórico
noticiando-lhes que eu seria pai e o primeiro neto estaria em breve
chorando em seus braços. Eles sempre lamentaram a singelez do
casamento, ao qual faltaram, e nossos hábitos avessos a formalidades
e rituais. Mas comemoraram conosco brindando pelo futuro herdeiro.
Miriam floresceu como um ipê e
todos os dias converteram-se numa radiante primavera iluminada pelos
tenros sorrisos dela. Não houve enjoos nem cólicas nem
indisposições e maus humores. Minha esposa era uma dessas raras
mulheres a quem a gravidez deixava ainda mais bela. Sua barriga
cresceu sem pressa e sem estrias nem inchaços nos pés. Ela a
deixava à mostra em blusas que antes jamais usaria.
Ouvimos o coraçãozinho de nosso
filho bater e era como o galope insano de um cavalo, um pou pou pou
frenético e cheio de vida. Porém ao mesmo tempo tão delicado e
frágil. A médica disse que estava tudo bem e mostrou-se muito
simpática ao responder as perguntas que Miriam metralhava com uma
ingenuidade emocionante. Posso comer carne vermelha? É verdade que
preciso comer mais mesmo que eu não tenha fome? Posso dormir de
bruços? Eu e o meu marido, a gente pode, ahn, a gente ainda pode...
Que linda ela ficava tão bobinha, doutora em Letras e pré-escolar
em maternidade.
Eu me punha seguro no papel de
pai, segurando sua mão, sorrindo quando podia e pondo-me seriamente
atento quando devia. Conversávamos sobre tudo e líamos juntos as
revistas sobre gravidez e bebês.
Houve no entanto um dia em que o
semblante da médica crispou-se e uma nuvem escura pousou sobre nós.
O resultado de um exame apontava algo irregular. A médica folheou
alguma coisa procurando uma informação, conferiu o papel que lhe
apresentávamos, confrontou-o com algo escrito em um livro grosso e
solicitou novos exames.
Perguntamos o que havia e ela
disse que por hora não valia a pena nos pôr preocupados. Era melhor
realizar com urgência um exame específico para dirimir a dúvida.
Corremos ao laboratório e
fizemo-lo. Tratava-se de um procedimento complicado que deixou minha
esposa inquieta, para dizer o mínimo. Levou duas semanas para que o
resultado ficasse pronto e nesse tempo experimentamos uma angústia
sem paralelo em nossas vidas. Voltamos à médica com o envelope
lacrado, pois não queríamos antecipar nada. Já pesquisáramos a
respeito do exame e o que descobrimos sobre ele nos apontava
possibilidades desanimadoras.
Recebemos a confirmação
perplexos. Os olhos arregalados e os músculos tensos. Retesamo-nos
nas cadeiras que ocupávamos no consultório e percebi que não
suportaria o nó que se formara em meu peito. Súbito senti como se
algo batesse-me em cheio no meu estômago pondo-me sem ar.
Escureceu-se o dia e um pretume espesso invadiu-me os olhos e uma
tontura repentina levou-me ao chão.
Estive sem ar e sem tino,
despossuído de mim. Ao abrir os olhos Miriam fitava-me assombrada,
os olhos vidrados, enormes e vazios. Abria-se entre nós um abismo.
Ergui-me num átimo e saltei em seus braços. Enlacei seu corpo mas
não alcancei-lhe mais o espírito. Ficáramos em lados opostos da
fenda que cindira o mundo em dois.
Nosso filho nasceria, choraria
como os outros e como nós fizéramos, sujaria as fraldas e
engatinharia pelo chão, com atraso em relação aos outros e em
relação a nós quando bebês. Demoraria mais ainda para aprender a
falar, e, considerando a especificidade de seu caso, provavelmente
jamais aprenderia a ler nem escrever.
Miriam nunca se conformaria. Eu
já podia imaginá-la fazendo das tripas coração para inventar mil
formas diferentes de explicar-lhe o formato das letras e a
correspondência dos sons. Faria desenhos, comporia músicas,
encenaria esquetes, desenvolveria peças e equipamentos. Seria
incansável. Nunca desistiria de seu filho, como nunca desistia de um
aluno.
E esqueceria de mim.
O menino nasceu cercado de afeto
de duas famílias que fingiam ser uma só e se esforçavam para
disfarçar o desencanto. O menino reagia estranhamente aos estímulos,
sem compreendê-los. E sorria ao ouvir minha voz. Somente meus
dichotes tolos e minhas caretas, que sempre tinham desagradado
Miriam, punham-no a sorrir. Da primeira vez ela me pôs um olhar
desaprovador, imediatamente substituído por um sorriso entre um par
de lágrimas. Ele é lindo, ela disse. E eu então senti que o amava.
Dividíamos as tarefas como um
casal pós-moderno, mas Miriam parecia sempre mais assoberbada do que
eu. Ela não suportava as tarefas do lar e concentrava uma energia
incomum no trabalho. Preocupava-se com o rendimento de cada aluno,
sabia seus nomes, problemas familiares e angústias pessoais.
Consumia-se carregando com eles suas cruzes e inquietando-se com seus
dilemas. Eu a ouvia e ponderava, dizia-lhe que não era sua função
resolver problemas que não diziam respeito à aprendizagem dos
conteúdos de suas disciplinas, mas nisso ela jamais me ouvia.
O menino desde que saíra do
hospital era acompanhado por uma equipe multidisciplinar responsável
por atividades de estimulação. Que, no entanto, de pouco ou nada
valiam.
Quando ele fez sete anos fomos
obrigados a matriculá-lo em uma escola. Ela achava fundamental; eu
achava uma violência. Até então ele frequentara espaços
especializados e creches com propostas inclusivas. A escola
significava entrar em um mundo onde o aprendizado se dava segundo
critérios e metodologias voltados a um público cujas capacidades
nem de longe se assemelhavam às de nosso filho. Ele não sabia menos
do que os outros. Ele simplesmente não sabia nem poderia algum dia
saber. Mas Miriam nunca admitiria isso.
Até então ela confiara no
trabalho dos educadores especiais. Mas bastou matricular o menino
para que um caminhão de críticas fosse despejado sobre os ombros de
professores, direção, coleguinhas, pais, paredes, livros e
materiais.
Todos podem aprender, ela
teimava. Nosso filho só precisa de mais tempo e de outros métodos,
diferentes destes ranços pré-históricos excludentes,
discriminatórios, fascistas! E então ela ficava feia.
Com o tempo eu a olhava e já não
reconhecia. Não se parecia com a mulher com quem eu casara tampouco
com a estudante com quem eu discutia. Não havia mais abertura em seu
coração para discussões. Petrificadas em seu peito morriam
certezas azedadas por dez anos de frustrações. Quando o menino
completou uma década, ela ainda não fora capaz de ensinar-lhe a
escrever o próprio nome.
Ele nunca aprenderá a ler, não
é? A pergunta doeu em nós dois como uma facada. Sufoquei-me num
choro represado e solucei, fragilizado. Ela acompanhou-me com seu
pranto e misturamos nossas lágrimas abraçados na cama. Acariciei
seu cabelo e velei seu sono. No dia seguinte ela acordaria revigorada
para prosseguir seu trabalho de Sísifo lutando contra Deus, o Diabo
e o Mundo, defendendo nosso filho dos outros, impondo a todos e a si
mesma a aceitação de suas limitações e a adaptação a suas
necessidades. Todos e tudo deviam se adaptar a ele. E com isso eu
nunca me conformaria.
Meu filho não podia ser motivo
para que a escola se descuidasse dos outros. Para mim a inclusão
deveria valer para aleijados, cegos, surdos e qualquer pessoa que,
apesar de fisicamente limitada, estivesse cognitivamente apta a
aprender num ritmo, e agora a terra se abrirá para que o inferno
engula a mim e meu preconceito de direita, aprender num ritmo, eu
dizia, dentro do padrão médio da normalidade, veja lá o que isso
significa.
Eu levava o menino ao parque e
jogava com ele uma espécie de futebol. Sua coordenação motora
também era limitada e nem os times ele conseguia discernir. Mas
adorava brincar comigo. Ria com uma espontaneidade encantadora. Eu
não lhe corrigia nem orientava, apenas me divertia passando-lhe a
bola e dizendo bobagens para provocá-lo. E ele ria. Feliz.
A presença dos outros o acuava.
Miriam o deixava receoso, preocupado em aprender a próxima lição
para não decepcioná-la. Quando me via relaxava e sorria antevendo o
recreio. Eu não tentava ensinar-lhe nada, só queria que nos
divertíssemos junto como pai e filho. Ele não aprontava nada para
eu ter de repreendê-lo, então por que atormentá-lo com o que
estava além de suas forças?
Miriam e eu nunca conversamos
sobre as pílulas anticoncepcionais que ela passou a tomar depois que
o menino nasceu. Simplesmente sabíamos que não havia espaço para
outro.
Enquanto isso, eu e Miriam
tornávamo-nos estranhos. Deitávamos na cama e conversávamos ou
sobre o trabalho ou, no quase sempre das vezes, sobre o menino.
Nestas ocasiões eu ouvia e calava, sabendo que nada do que eu
dissesse seria aceito por ela, a menos que eu dissesse exatamente o
que ela pensava. Não valia a pena discutir e deixá-la ainda mais
feia.
Baldados eram todos os meus
esforços de fazê-la sorrir. O menino gargalhava e ela me olhava com
um ar de reprovação. Às vezes no entanto ela abrandava,
aproximava-se e num grande esforço participava do brinquedo. Mas seu
sorriso já não tinha brilho nem criava primaveras.
E foi então que uma ideia que
amadurecia escondida dentro de mim, oculta aos outros e a mim mesmo,
mostrou-se claramente. Travou-se em meu peito uma luta intensa que
escureceu meus olhos e jogou-me ao chão. Acordei com Miriam gritando
meu nome entre lágrimas desesperadas e o menino espremendo-se contra
a parede com olhos assustados, enormes e negros. A tontura era tanta
que um vômito espesso voou de minhas entranhas como se meu corpo
quisesse expulsar o demônio daquela ideia.
Uma semana depois, quando
obriguei-me a me olhar no espelho, percebi que eu estava feio. As
olheiras inchavam minha cara inteira e meus alunos olhavam-me
perplexos, incapazes de questionar-me o que acontecia. Passei a mão
pelo rosto espetando-me na barba. Toquei as lágrimas que
umedeciam-na. Ajoelhei-me, sentei-me ao lado da pia e chorei até
meus olhos de todo secarem.
Concluí que o menino precisava
morrer.
A semana seguinte dediquei à
pesquisa e aos preparativos. Enquanto lia sobre venenos e modos de
dissolvê-los e ministrá-los, fitava-o vendo tevê. Desenhos
animados, filmes de ação com explosões e brigas, esportes. Como
qualquer outra criança. Exceto porque, quando eu levantava para
sentar-me ao seu lado, ele só sabia me responder que estava olhando
tevê. E que filme é esse, meu filho? É de briga, pai. E mais do
que isso eu não conseguia fazê-lo entender. Quando eu explicava,
olhava-me fingindo entender, com os olhos a denunciar que nada
compreendera.
E contudo eu o amava. Porém
Miriam era um sonho materializado na forma de uma mulher. Um sonho do
qual eu percebia agora ser incapaz de desistir. Em uma das mãos eu
tinha o menino, na outra eu tinha a mulher de minha vida. Mas eu
precisava das duas mãos para segurar cada um destes sonhos. Era
portanto necessário escolher.
Numa tarde de terça-feira em que
eu estava a sós com o menino, num dia frio de inverno, ofereci-lhe
um chá quente e chocolate. Ele adorava chá e chocolate e ficou na
sala desenhando enquanto eu preparava tudo na cozinha. Esquentei a
água e depois coloquei os saquinhos de chá para dissolvê-los.
Servi duas xícaras, tirei do bolso o frasco com o veneno e despejei
em uma delas.
Mexi o chá e deixei a colherinha
dentro da xícara dele para não me confundir. Levei tudo em uma
bandeja, os chás e o chocolate.
Parei diante dele e olhei com
ternura seus olhos que brilhavam como os da mãe dez anos antes. Ele
era lindo e eu o amava. Queria estreitá-lo em meus braços e
protegê-lo do mundo, da obrigação de ir à escola, das regras da
Miriam. Queria vê-lo engordar empanturrado de chá e chocolate até
explodir numa de suas gargalhadas. Queria brincar com ele e curtir
alegremente sua eterna infância. Queria meu Peter Pan para sempre ao
meu lado. No entanto, meu querer a Miriam se impunha, dominante.
Queria tanto tê-la de volta. A
minha querida. Minha linda. O meu amor. Minha vida. Então servi ao
menino o chá. Ele estendeu-me as mãos sorrindo, pegou a xícara e
sorveu seu conteúdo ansiosamente.
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