sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Por Miriam, com amor


Minha esposa e eu vivíamos um amor risonho e doce nos idos de 2003. Éramos recém-casados após dois anos de namoro e um curto período de noivado. Ambos contávamos trinta anos, tínhamos bons empregos e nossos currículos incluíam um mestrado no qual nos conhecêramos e um doutorado que marcou o início de nosso relacionamento, após longos anos de acaloradas discussões. Eu era um professor neoliberal empedernido que pensava que a educação dependia de estudantes empenhados e de professores com grande conhecimento para transmiti-lo. Ela odiava a palavra transmissão e tinha um discurso pós-moderno que incorporava o marxismo, os estudos culturais e tudo que colocava os estudantes burros e preguiçosos como vítimas de um sistema opressor e de uma escola excludente. Divergíamos em tudo até eu vê-la sorrir e perceber que, embora eu nunca concordaria com ela em relação a políticas educacionais, eu sempre quereria fazê-la sorrir daquela maneira.
Apaixonei-me subitamente e não perdi nem um segundo em convidá-la para sair. Disse-lhe esta noite vamos deixar as polêmicas de lado e falar sobre nós, eu mal sei seu nome e passei os últimos anos discordando de você. Ela se mostrou amável e simpática. Nada que se assemelhasse à militante das aulas. Eu levo a pós-modernidade a sério, disse ela, inclusive no que diz respeito a mim mesma, não sou uma só, não sou única, indivisível e especial, sou várias e gosto de poder ser assim, múltipla. E se abriu em um sorriso que me convenceu de que, ao contrário do que ela dissera, era único e a fazia absolutamente especial.
Casamos em um sábado à tarde em uma praça no centro da cidade. Não havia padre nem juiz, somente amigos. Ela convidara os alunos, e eles compareceram às centenas. Cada um trouxera bebidas, biscoitos e bolos caseiros. Eu vestira meu melhor terno e ela chegou com um vestido branco de vinte reais, um pequeno buquê de margaridas e uma fita no cabelo. Em todo o mundo nunca houve noiva mais bela. Antes de beijá-la, duas lágrimas desceram dos meus olhos e eu sussurrei olhando-a na alma eu te amo de todo o meu coração. Ela ergueu-se na ponta dos pés que vestiam uma sapatilha rasteirinha e disse a ti entrego hoje meu corpo e meu espírito em sinal do meu amor.
Quando Miriam engravidou fiquei como louco. Abracei-a apaixonadamente e a ergui no ar girando com ela em êxtase, transportado de alegria. A notícia alcançou-me dois meses depois de nos casarmos. Liguei para meus pais eufórico noticiando-lhes que eu seria pai e o primeiro neto estaria em breve chorando em seus braços. Eles sempre lamentaram a singelez do casamento, ao qual faltaram, e nossos hábitos avessos a formalidades e rituais. Mas comemoraram conosco brindando pelo futuro herdeiro.
Miriam floresceu como um ipê e todos os dias converteram-se numa radiante primavera iluminada pelos tenros sorrisos dela. Não houve enjoos nem cólicas nem indisposições e maus humores. Minha esposa era uma dessas raras mulheres a quem a gravidez deixava ainda mais bela. Sua barriga cresceu sem pressa e sem estrias nem inchaços nos pés. Ela a deixava à mostra em blusas que antes jamais usaria.
Ouvimos o coraçãozinho de nosso filho bater e era como o galope insano de um cavalo, um pou pou pou frenético e cheio de vida. Porém ao mesmo tempo tão delicado e frágil. A médica disse que estava tudo bem e mostrou-se muito simpática ao responder as perguntas que Miriam metralhava com uma ingenuidade emocionante. Posso comer carne vermelha? É verdade que preciso comer mais mesmo que eu não tenha fome? Posso dormir de bruços? Eu e o meu marido, a gente pode, ahn, a gente ainda pode... Que linda ela ficava tão bobinha, doutora em Letras e pré-escolar em maternidade.
Eu me punha seguro no papel de pai, segurando sua mão, sorrindo quando podia e pondo-me seriamente atento quando devia. Conversávamos sobre tudo e líamos juntos as revistas sobre gravidez e bebês.
Houve no entanto um dia em que o semblante da médica crispou-se e uma nuvem escura pousou sobre nós. O resultado de um exame apontava algo irregular. A médica folheou alguma coisa procurando uma informação, conferiu o papel que lhe apresentávamos, confrontou-o com algo escrito em um livro grosso e solicitou novos exames.
Perguntamos o que havia e ela disse que por hora não valia a pena nos pôr preocupados. Era melhor realizar com urgência um exame específico para dirimir a dúvida.
Corremos ao laboratório e fizemo-lo. Tratava-se de um procedimento complicado que deixou minha esposa inquieta, para dizer o mínimo. Levou duas semanas para que o resultado ficasse pronto e nesse tempo experimentamos uma angústia sem paralelo em nossas vidas. Voltamos à médica com o envelope lacrado, pois não queríamos antecipar nada. Já pesquisáramos a respeito do exame e o que descobrimos sobre ele nos apontava possibilidades desanimadoras.
Recebemos a confirmação perplexos. Os olhos arregalados e os músculos tensos. Retesamo-nos nas cadeiras que ocupávamos no consultório e percebi que não suportaria o nó que se formara em meu peito. Súbito senti como se algo batesse-me em cheio no meu estômago pondo-me sem ar. Escureceu-se o dia e um pretume espesso invadiu-me os olhos e uma tontura repentina levou-me ao chão.
Estive sem ar e sem tino, despossuído de mim. Ao abrir os olhos Miriam fitava-me assombrada, os olhos vidrados, enormes e vazios. Abria-se entre nós um abismo. Ergui-me num átimo e saltei em seus braços. Enlacei seu corpo mas não alcancei-lhe mais o espírito. Ficáramos em lados opostos da fenda que cindira o mundo em dois.
Nosso filho nasceria, choraria como os outros e como nós fizéramos, sujaria as fraldas e engatinharia pelo chão, com atraso em relação aos outros e em relação a nós quando bebês. Demoraria mais ainda para aprender a falar, e, considerando a especificidade de seu caso, provavelmente jamais aprenderia a ler nem escrever.
Miriam nunca se conformaria. Eu já podia imaginá-la fazendo das tripas coração para inventar mil formas diferentes de explicar-lhe o formato das letras e a correspondência dos sons. Faria desenhos, comporia músicas, encenaria esquetes, desenvolveria peças e equipamentos. Seria incansável. Nunca desistiria de seu filho, como nunca desistia de um aluno.
E esqueceria de mim.
O menino nasceu cercado de afeto de duas famílias que fingiam ser uma só e se esforçavam para disfarçar o desencanto. O menino reagia estranhamente aos estímulos, sem compreendê-los. E sorria ao ouvir minha voz. Somente meus dichotes tolos e minhas caretas, que sempre tinham desagradado Miriam, punham-no a sorrir. Da primeira vez ela me pôs um olhar desaprovador, imediatamente substituído por um sorriso entre um par de lágrimas. Ele é lindo, ela disse. E eu então senti que o amava.
Dividíamos as tarefas como um casal pós-moderno, mas Miriam parecia sempre mais assoberbada do que eu. Ela não suportava as tarefas do lar e concentrava uma energia incomum no trabalho. Preocupava-se com o rendimento de cada aluno, sabia seus nomes, problemas familiares e angústias pessoais. Consumia-se carregando com eles suas cruzes e inquietando-se com seus dilemas. Eu a ouvia e ponderava, dizia-lhe que não era sua função resolver problemas que não diziam respeito à aprendizagem dos conteúdos de suas disciplinas, mas nisso ela jamais me ouvia.
O menino desde que saíra do hospital era acompanhado por uma equipe multidisciplinar responsável por atividades de estimulação. Que, no entanto, de pouco ou nada valiam.
Quando ele fez sete anos fomos obrigados a matriculá-lo em uma escola. Ela achava fundamental; eu achava uma violência. Até então ele frequentara espaços especializados e creches com propostas inclusivas. A escola significava entrar em um mundo onde o aprendizado se dava segundo critérios e metodologias voltados a um público cujas capacidades nem de longe se assemelhavam às de nosso filho. Ele não sabia menos do que os outros. Ele simplesmente não sabia nem poderia algum dia saber. Mas Miriam nunca admitiria isso.
Até então ela confiara no trabalho dos educadores especiais. Mas bastou matricular o menino para que um caminhão de críticas fosse despejado sobre os ombros de professores, direção, coleguinhas, pais, paredes, livros e materiais.
Todos podem aprender, ela teimava. Nosso filho só precisa de mais tempo e de outros métodos, diferentes destes ranços pré-históricos excludentes, discriminatórios, fascistas! E então ela ficava feia.
Com o tempo eu a olhava e já não reconhecia. Não se parecia com a mulher com quem eu casara tampouco com a estudante com quem eu discutia. Não havia mais abertura em seu coração para discussões. Petrificadas em seu peito morriam certezas azedadas por dez anos de frustrações. Quando o menino completou uma década, ela ainda não fora capaz de ensinar-lhe a escrever o próprio nome.
Ele nunca aprenderá a ler, não é? A pergunta doeu em nós dois como uma facada. Sufoquei-me num choro represado e solucei, fragilizado. Ela acompanhou-me com seu pranto e misturamos nossas lágrimas abraçados na cama. Acariciei seu cabelo e velei seu sono. No dia seguinte ela acordaria revigorada para prosseguir seu trabalho de Sísifo lutando contra Deus, o Diabo e o Mundo, defendendo nosso filho dos outros, impondo a todos e a si mesma a aceitação de suas limitações e a adaptação a suas necessidades. Todos e tudo deviam se adaptar a ele. E com isso eu nunca me conformaria.
Meu filho não podia ser motivo para que a escola se descuidasse dos outros. Para mim a inclusão deveria valer para aleijados, cegos, surdos e qualquer pessoa que, apesar de fisicamente limitada, estivesse cognitivamente apta a aprender num ritmo, e agora a terra se abrirá para que o inferno engula a mim e meu preconceito de direita, aprender num ritmo, eu dizia, dentro do padrão médio da normalidade, veja lá o que isso significa.
Eu levava o menino ao parque e jogava com ele uma espécie de futebol. Sua coordenação motora também era limitada e nem os times ele conseguia discernir. Mas adorava brincar comigo. Ria com uma espontaneidade encantadora. Eu não lhe corrigia nem orientava, apenas me divertia passando-lhe a bola e dizendo bobagens para provocá-lo. E ele ria. Feliz.
A presença dos outros o acuava. Miriam o deixava receoso, preocupado em aprender a próxima lição para não decepcioná-la. Quando me via relaxava e sorria antevendo o recreio. Eu não tentava ensinar-lhe nada, só queria que nos divertíssemos junto como pai e filho. Ele não aprontava nada para eu ter de repreendê-lo, então por que atormentá-lo com o que estava além de suas forças?
Miriam e eu nunca conversamos sobre as pílulas anticoncepcionais que ela passou a tomar depois que o menino nasceu. Simplesmente sabíamos que não havia espaço para outro.
Enquanto isso, eu e Miriam tornávamo-nos estranhos. Deitávamos na cama e conversávamos ou sobre o trabalho ou, no quase sempre das vezes, sobre o menino. Nestas ocasiões eu ouvia e calava, sabendo que nada do que eu dissesse seria aceito por ela, a menos que eu dissesse exatamente o que ela pensava. Não valia a pena discutir e deixá-la ainda mais feia.
Baldados eram todos os meus esforços de fazê-la sorrir. O menino gargalhava e ela me olhava com um ar de reprovação. Às vezes no entanto ela abrandava, aproximava-se e num grande esforço participava do brinquedo. Mas seu sorriso já não tinha brilho nem criava primaveras.
E foi então que uma ideia que amadurecia escondida dentro de mim, oculta aos outros e a mim mesmo, mostrou-se claramente. Travou-se em meu peito uma luta intensa que escureceu meus olhos e jogou-me ao chão. Acordei com Miriam gritando meu nome entre lágrimas desesperadas e o menino espremendo-se contra a parede com olhos assustados, enormes e negros. A tontura era tanta que um vômito espesso voou de minhas entranhas como se meu corpo quisesse expulsar o demônio daquela ideia.
Uma semana depois, quando obriguei-me a me olhar no espelho, percebi que eu estava feio. As olheiras inchavam minha cara inteira e meus alunos olhavam-me perplexos, incapazes de questionar-me o que acontecia. Passei a mão pelo rosto espetando-me na barba. Toquei as lágrimas que umedeciam-na. Ajoelhei-me, sentei-me ao lado da pia e chorei até meus olhos de todo secarem.
Concluí que o menino precisava morrer.
A semana seguinte dediquei à pesquisa e aos preparativos. Enquanto lia sobre venenos e modos de dissolvê-los e ministrá-los, fitava-o vendo tevê. Desenhos animados, filmes de ação com explosões e brigas, esportes. Como qualquer outra criança. Exceto porque, quando eu levantava para sentar-me ao seu lado, ele só sabia me responder que estava olhando tevê. E que filme é esse, meu filho? É de briga, pai. E mais do que isso eu não conseguia fazê-lo entender. Quando eu explicava, olhava-me fingindo entender, com os olhos a denunciar que nada compreendera.
E contudo eu o amava. Porém Miriam era um sonho materializado na forma de uma mulher. Um sonho do qual eu percebia agora ser incapaz de desistir. Em uma das mãos eu tinha o menino, na outra eu tinha a mulher de minha vida. Mas eu precisava das duas mãos para segurar cada um destes sonhos. Era portanto necessário escolher.
Numa tarde de terça-feira em que eu estava a sós com o menino, num dia frio de inverno, ofereci-lhe um chá quente e chocolate. Ele adorava chá e chocolate e ficou na sala desenhando enquanto eu preparava tudo na cozinha. Esquentei a água e depois coloquei os saquinhos de chá para dissolvê-los. Servi duas xícaras, tirei do bolso o frasco com o veneno e despejei em uma delas.
Mexi o chá e deixei a colherinha dentro da xícara dele para não me confundir. Levei tudo em uma bandeja, os chás e o chocolate.
Parei diante dele e olhei com ternura seus olhos que brilhavam como os da mãe dez anos antes. Ele era lindo e eu o amava. Queria estreitá-lo em meus braços e protegê-lo do mundo, da obrigação de ir à escola, das regras da Miriam. Queria vê-lo engordar empanturrado de chá e chocolate até explodir numa de suas gargalhadas. Queria brincar com ele e curtir alegremente sua eterna infância. Queria meu Peter Pan para sempre ao meu lado. No entanto, meu querer a Miriam se impunha, dominante.
Queria tanto tê-la de volta. A minha querida. Minha linda. O meu amor. Minha vida. Então servi ao menino o chá. Ele estendeu-me as mãos sorrindo, pegou a xícara e sorveu seu conteúdo ansiosamente.

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