Meu filho tem doze anos e assiste
impassível a um filme na tevê. Um garoto com poderes mágicos voa
numa vassoura atrás de uma bola dourada com asas. Meu filho parece
identificar-se com ele. Porém reparo em seu cabelo e uma espécie de
corte moicano procura reproduzir o estilo de um jogador de futebol. É
um cabelo igual ao de seus colegas da escola. E fui eu que o levei ao
barbeiro e concordei com a ideia para não frustrá-lo. Meu filho
quer ser jogador de futebol porque gosta de jogar bola e porque os
jogadores ganham muito dinheiro.
Eu sou professor e minha esposa é
bancária. Vivemos um casamento cheio de amor e não nos falta
harmonia. No entanto quando olho para meu filho não sinto nele
nenhum mistério. Há em seus olhos uma espécie de vazio, como se
faltasse alguma coisa em seu olhar. São dois olhos redondos, grandes
e bonitos e nada mais.
Eu jogo futebol com ele, agora
menos do que quando ele era menor. Agora ele tem mais autonomia para
fazer isso com seus amigos. Nós ainda andamos na mata desbravando
trilhas e desviando das aranhas. Andamos de bicicleta e fazemos o
dever de casa. Assistimos tevê juntos, esportes, filmes, notícias.
Lemos revistas e livros e jornais. No apartamento em que moramos
acumulamos uma bela biblioteca ampliada mensalmente. E no entanto meu
filho tem olhos sonsos de um menino que não teve herói.
Um dia me disseram pobre do país
que precisa de heróis e não sabiam o que estavam dizendo, porque
pobre do menino que não tem heróis. Pois garotos que voam em
vassouras não são heróis. Jogadores com gel no cabelo que recuam a
bola para o goleiro não são heróis.
Meu herói surgiu em 1988. Eu
tinha apenas seis anos mas ainda me lembro perfeitamente. Esta é, na
verdade, minha primeira lembrança. Aconteceu em um domingo de manhã.
Eu acordei, limpei os olhos com
os dedos e liguei a televisão. Minha mãe lavava a roupa lá fora,
esfregando-a impetuosamente no tanque para depois estendê-la no
varal sem perceber que eu já levantara.
Morávamos em uma casa pequena,
paredes de alvenaria e chão de madeira, telhado de brasilit e
banheiro externo. Tinha trinta metros quadrados, sala e cozinha numa
peça apenas e dois quartos. Eu não tinha pai e meu irmão acordava
tarde depois de uma noite dançando nos fandangos de sábado.
Na tela um homem de olhar sereno
era focalizado pela câmera. Num movimento ele colocou uma coisa meio
que de pano na cabeça, um capuz esquisito que disseram chamar-se
balaclava, depois enfiou a cabeça no capacete apertado. Ajudaram-no
a afivelar o cinto. Ele não estava na primeira posição de largada.
Tratava-se de uma corrida de
automóveis que estava prestes a iniciar. Eu já assistira a algumas
delas, talvez dezenas, mas nunca reparara exatamente em nada. Eu não
era muito de reparar nas coisas. Eu não entendia bem o que acontecia
a minha volta e eu não compreendia exatamente o que estavam
mostrando na tevê. Só percebia que um tentava ultrapassar o outro
para chegar primeiro.
Acontece que naquele dia eu
finalmente enxerguei que não era só isso. Não se tratava apenas de
vencer uma corrida. Não se tratava apenas de concluir uma etapa. Era
mais que um esporte. E meu herói era mais que um homem.
Aparentemente um homem acelerou
tudo o que podia e contornou curvas e apontou em retas e correu risco
de bater em muros porque queria vencer. Porém não era só isso.
Algo que me escapava no início da prova foi aos poucos ficando mais
claro.
Eu era um garotinho raquítico
com dentes semidesenvolvidos de rato, orelhas de abano e imensas de
rato, barriga protuberante de vermes de rato, olhos redondos e
grandes e inexpressivos de rato, jeito acanhado e tímido e assustado
de rato. Minha professora da pré-escola dizia que eu não tinha
condições de acompanhar a turma e que era melhor eu ficar mais um
ano antes de ir para a primeira série. Eu voltava para casa da
escola ao meio dia, a pé, caminhava três quilômetros em estrada de
chão batido comendo a poeira levantada pelos carros, requentava a
comida que minha mãe deixara pronta, almoçava em silêncio de
frente para o meu irmão de catorze anos que chegara do trabalho e
partiria novamente meia hora depois em sua bicicleta monareta, lavava
a louça e depois passava a tarde vendo tevê sem prestar atenção
aos filmes da sessão da tarde embasbacado com as imagens em preto e
branco na tela de catorze polegadas.
Enquanto isso um homem se
preparava para vencer corridas a mais de trezentos por hora por uma
razão maior do que a vitória.
Naquele domingo, quando meu herói
cruzou a linha de chegada, entendi que não era só isso.
Foi uma corrida difícil. Meu
herói teve de ultrapassar muitos carros, superar a adversidade da
chuva que para ele parecia não ser um problema e sim uma solução.
Metros depois da chegada, parou o carro e pegou uma bandeira que lhe
ofereciam. Eu conhecia aquela bandeira. Era a bandeira de um país
que diziam que era o meu país, ainda que eu nunca o tivesse visto de
verdade tampouco o país tivesse feito algo por mim. Mas não era só
isso.
Enquanto meu herói dava uma
volta inteira acenando a bandeira eu entendi que não era para as
pessoas da arquibancada, não era para os cinegrafistas da tevê, não
era para uma pátria inteira que ele erguia o punho com a bandeira
apertada na mão. A bandeira era só um símbolo, uma abstração.
Não significava o que era, e também não significava um país nem
um povo. Ele balançou a bandeira para afastar a névoa de meus olhos
e fazer-me ver.
Fazer-me ver que vencera por mim.
Porque meu herói sabia que em
algum lugar um garotinho encolhia-se em si mesmo como um rato. Meu
herói sabia que em algum lugar um garotinho olhava sem ver e não
entendia. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho não tinha
um herói. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho precisava
que ele vencesse e acenasse uma bandeira como quem dissesse olha,
garoto, eu venci, e foi por você.
Minha mãe entrou em casa e disse
oi, filho, e eu disse oi, mãe. Quem ganhou a corrida, ela perguntou
e eu ainda não sabia responder com um nome mas sentia que algo
acontecera.
Demorou duas semanas para a
próxima prova. Tempo suficiente para eu descobrir que não era só
eu que assistira àquela corrida. Tinha muita gente acompanhando as
vitórias de meu herói. Um país inteiro. Gente do mundo todo.
Garotos de todas as idades de várias partes do mundo devem tê-lo
visto naquele domingo. E no outro, duas semanas depois, quando
novamente venceu. E devem ter acompanhado suas derrotas. A batida
contra o muro quando liderava com folga. A derrapagem. A pane seca.
Os problemas no motor. O furo do pneu. A batida contra o companheiro
de equipe quando este o jogou para fora da corrida. A
desclassificação injusta de uma prova que ele vencera no braço, na
raça e na coragem, e que perdeu no tapetão.
E eu não me importava de dividir
meu herói com toda essa gente. Porque ele era tão grande, tão
valente, que cabia inteiro no coração de todo mundo sem deixar de
ser meu herói. Gente de toda parte comemorava suas vitórias e
lamentava suas derrotas. E eu sentia que suas vitórias eram por mim
e que sua tristeza quando não vencia era porque sabia que não
vencera por mim. E eu queria poder dizer-lhe que não precisava ficar
triste porque eu estava aprendendo que a vida é assim.
O país vivia uma situação
complicada, com miséria por toda a parte, desemprego, pessoas
morrendo de fome e uma democracia que engatinhava depois de uma longa
e violenta ditadura porque toda ditadura é violenta e mesmo que dure
um dia já foi longa demais. Minha mãe trabalhava o dia inteiro e
recebia um salário que mal dava para pagar a comida que punha na
mesa, e que era limitada. Por isso meu irmão trabalhava, também o
dia inteiro, para receber menos ainda. O país arrastava cem anos de
atraso, com homens recebendo pouco, mulheres recebendo menos e
adolescentes quase nada. Trabalhava-se praticamente de sol a sol e a
escola terminava na quinta série, momento em que meu irmão
abandonou os estudos.
Eu era de uma geração que
brincava nas ruas com bola de meia, mas ninguém me escalava para o
time. Eu era de uma geração que brincava de carrinhos de lata, mas
eu os arrastava sempre sozinho. Eu era de uma geração que apanhava
bergamotas no pé, mas eu não tinha amigos para ver quem cuspia a
semente mais longe. Eu era de uma geração com sonhos e esperança
de um país melhor, mas isso porque o país era uma merda.
O mundo, por sua vez, comemorava
a queda do muro de Berlim. Eu não sabia o que isso significava, mas
pensava como devia haver gente rica no mundo para que alguém pudesse
construir um muro tão alto e tão grande em volta de uma propriedade
tão imensa como um país inteiro.
Enquanto isso meu herói era quem
passava mais perto dos muros em Mônaco. Houvesse chuva ou sol e
independentemente da posição em que ele largava e de todos dizerem
que não dava para passar em Mônaco, meu herói era sempre o
favorito. Ninguém passava, mas ele passava. E quando um carro muito
mais rápido e muito melhor do que o dele tentava passá-lo, não
passava, porque meu herói sabia defender-se como ninguém.
Como alguém podia andar tão
rápido numa pista tão estreita, eu me perguntava. E ele vencia.
Mais tarde eu soube que, anos antes, com um carro muito inferior, sob
uma bruta chuva, ele passou todo mundo e venceu mas a direção disse
que interrompera a prova e que valia o resultado de uma volta antes.
Meu herói sofreu com as injustiças e lutou contra elas. Estas lutas
ele perdeu, porque não era bom de conversa, era bom na pista. Vencia
como tinha que vencer. Com ele não tinha jeitinho. Com ele não
tinha papinho mole. Era acelerar e vencer. E pronto. Simples assim.
Regra é regra e vence quem chega na frente. Quem chega atrás tem
que melhorar e tentar na próxima. E pronto. Meu herói não
representava como nós que o amávamos éramos. Ele representava o
que todos nós queríamos ser. Não queríamos imitar seu corte de
cabelo ou seu jeito de vestir ou suas tatuagens que ele não tinha.
Queríamos o seu jeito de olhar. Queríamos o seu jeito de ser.
Meu herói rivalizou com outros
grandes pilotos. Que no entanto nunca se mostraram grandes homens.
Eram apaixonados por carros e velocidade, mas não tinham aquele
olhar. Meu herói tinha olhos serenos de quem sabe sua
responsabilidade e precisa manter o foco para não me decepcionar.
Seu olhar era suave e no entanto penetrante, concentrado, e dentro de
sua cabeça ele fazia o traçado ideal diversas vezes para depois
repeti-lo na pista.
Quando meu herói era um garoto
ele foi mal em uma corrida de kart quando começou a chover. Depois
disso, toda vez que chovia ele corria para treinar. Tornou-se
destemido, venceu o medo da pista escorregadia e por isso era capaz
de explorar além do limite a velocidade possível no molhado.
Treinou tanto que quando chovia ele era imbatível.
Meu herói queria vencer, e eu
sentia que ele precisava fazê-lo por mim. Era pelo meu sorriso
gritado numa vibração desmedida que ele acelerava e passava e
vencia a todos.
Contudo havia os carros. O poder
dos carros. A tecnologia desenvolvida por outra equipe deixou meu
herói para trás num ano. Exceto em Mônaco, onde ele venceu
deixando um dos rivais mais de quarenta voltas atrás dele,
enlouquecido tentando ultrapassá-lo. Mas meu herói não deu espaço
e o leão não passou. Porque em Mônaco o que valia mesmo era o
braço, a coragem, o coração.
Esta outra equipe vencedora tinha
um dono numa cadeira de rodas e eu pensava como podia um homem numa
cadeira de rodas desenvolver um carro tão veloz e imbatível. Meu
herói queria correr com aquela equipe e em 1994 ele foi para lá.
Meu herói já fora tricampeão mundial e eu tinha doze anos. Porém
a federação internacional mudou o regulamento. Era a principal
categoria do automobilismo mundial e o regulamento mudara proibindo
as inovações tecnológicas que aquela equipe fizera e que lhe dera
tanto poder.
O carro desta vez não era bom.
Andava desequilibrado, saía de frente e de traseira. Tinha um
comportamento imprevisível como o de um touro bravo. E meu herói
precisava domá-lo para voltar a vencer. Para voltar a sacudir a
bandeira e mostrar que vencera por mim.
Meu herói não entendia como uma
outra equipe podia estar tão na frente e trabalhou muito junto com
engenheiros e mecânicos para transformar seu carro num carro
vencedor. Meu herói sabia fazer parte.
Perderam uma corrida. Duas. Três.
O carro rodava nas curvas. O carro balançava nas retas. O carro não
concluía as provas. E por mais que meu herói se esforçasse, as
coisas não iam bem.
Serenamente, no entanto, meu
herói foi explicando o que estava errado. Os engenheiros projetaram
mudanças. Os mecânicos as realizaram. O chefe da equipe confiava no
que meu herói dizia. Todos confiavam naquele olhar e nas suas
palavras mansas.
Meu herói não brigava exceto
por posições na pista. Meu herói não batia em ninguém, não
gritava, não prometia dar comida aos pobres, não dizia que acabaria
com a miséria, a opressão, a seca ou a enchente. Meu herói não
voava pelo ar com capa vermelha nem capturava monstros terríveis nem
bolas douradas com asas. Meu herói só andava de carro. Mas fazia-o
de tal modo, com tanta garra e coragem e vontade de vencer que valia
mais do que se voasse e me desse o pão que às vezes nos faltava.
Ele alimentava meu espírito. Ele me dava um exemplo.
Nos treinos de sexta-feira um
outro brasileiro bateu forte. Tão forte que foi proibido de correr
novamente naquele fim de semana. No sábado um piloto que eu até
então não conhecia, de uma equipe bem pequena que fechava o grid
bateu forte e morreu. Meu herói olhou assustado. Anos antes ele
parara no meio da pista para socorrer um piloto que batera. Desta
vez, no entanto, não houve o que fazer. Foi estranho ver que se
morria daquela maneira.
Meu herói concentrou-se como
pôde e fez a pole position. Apesar disso, ninguém sabia se ele
correria no domingo. Seu olhar estava diferente. Como podia alguém
morrer assim, ele se perguntava. O que há de errado para que isso
aconteça, ele devia estar questionando com os colegas. Devemos
correr depois de um amigo esmagar-se contra um muro e morrer.
Antes da largada, havia medo em
seus olhos e ao mesmo tempo um certo sentimento que não sei
explicar. Pela primeira vez no ano ele liderava uma corrida. Dominara
o touro bravo e aceleraria sobre seu dorso nas retas e curvas de
Ímola.
E assim, liderando a prova, no
lugar em que ele se sentia tão à vontade e pelo qual ele sempre
lutava tanto para vencer por mim, meu herói perdeu o controle do
carro por um motivo jamais descoberto, saiu da pista e ao bater
contra o muro recebeu na cabeça o impacto de uma barra de suspensão
que quebrou e voou contra ele liquefazendo seu cérebro.
Quando os médicos o retiraram do
carro seu corpo estava tenso e de repente, ao ser posto no solo,
relaxou. Naquele momento seu espírito libertou-se e por um instante
eu o vi acenando e despedindo-se, desculpando-se por que não vencera
por mim.
O país inteiro chorou comigo e
acompanhou com as faces lavadas em pranto o cortejo que o conduziu ao
cemitério. O mundo inteiro acompanhou pela tevê, com lágrimas
igualmente tristes. Meninos de todas as partes choraram como eu, e eu
não tive vergonha de engasgar-me em pranto e soluçar e encolher-me
num canto da parede.
Meu herói foi sepultado com as
honras e com o choro de um mundo inteiro, como deve ocorrer com os
heróis.
Morreu naquele dia primeiro de
maio de 1994.
Já faz tanto tempo. E as
lágrimas ainda correm no meu rosto e os soluços ainda obstruem
minha garganta, pois parece que foi ontem. E meu filho me olha sem
susto nem compreensão. Sua mente não entende e não há nenhum
mistério plantado em seu coração.
Meu herói é uma lembrança viva
e uma saudade constante. Meu herói plantou dentro de mim uma
semente, e deixou uma geração inteira órfã de seu exemplo, da
alegria de suas vitórias e da tristeza de suas derrotas. E eu não
me envergonho de ainda hoje chorar por ele.
Porque toda vez que as curvas da
vida me jogam pra fora, me batem com um muro na cara, me põem a
perder ou quando eu mesmo perco, lá vem ele, tantantan, tantantan, e
a voz do narrador se ergue entusiasmada pela música ao fundo, na
última volta, lá vem ele, na ponta dos dedos, de ponta a ponta, as
últimas curvas, aponta na reta, não perde mais, Ayrton, Ayrton,
Ayrton Senna do Brasiiiiil vence o Grande Prêmio, ergue o punho e
balança a bandeira.
Meu herói venceu mais uma. Eu
voltei por um instante a ser o menino que deixou de ser um rato
vendo-o vencer. Meu herói venceu e ergueu a bandeira. E é por mim
que ele a balança. Por mim, e por todos nós.
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