sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Meu herói


Meu filho tem doze anos e assiste impassível a um filme na tevê. Um garoto com poderes mágicos voa numa vassoura atrás de uma bola dourada com asas. Meu filho parece identificar-se com ele. Porém reparo em seu cabelo e uma espécie de corte moicano procura reproduzir o estilo de um jogador de futebol. É um cabelo igual ao de seus colegas da escola. E fui eu que o levei ao barbeiro e concordei com a ideia para não frustrá-lo. Meu filho quer ser jogador de futebol porque gosta de jogar bola e porque os jogadores ganham muito dinheiro.
Eu sou professor e minha esposa é bancária. Vivemos um casamento cheio de amor e não nos falta harmonia. No entanto quando olho para meu filho não sinto nele nenhum mistério. Há em seus olhos uma espécie de vazio, como se faltasse alguma coisa em seu olhar. São dois olhos redondos, grandes e bonitos e nada mais.
Eu jogo futebol com ele, agora menos do que quando ele era menor. Agora ele tem mais autonomia para fazer isso com seus amigos. Nós ainda andamos na mata desbravando trilhas e desviando das aranhas. Andamos de bicicleta e fazemos o dever de casa. Assistimos tevê juntos, esportes, filmes, notícias. Lemos revistas e livros e jornais. No apartamento em que moramos acumulamos uma bela biblioteca ampliada mensalmente. E no entanto meu filho tem olhos sonsos de um menino que não teve herói.
Um dia me disseram pobre do país que precisa de heróis e não sabiam o que estavam dizendo, porque pobre do menino que não tem heróis. Pois garotos que voam em vassouras não são heróis. Jogadores com gel no cabelo que recuam a bola para o goleiro não são heróis.
Meu herói surgiu em 1988. Eu tinha apenas seis anos mas ainda me lembro perfeitamente. Esta é, na verdade, minha primeira lembrança. Aconteceu em um domingo de manhã.
Eu acordei, limpei os olhos com os dedos e liguei a televisão. Minha mãe lavava a roupa lá fora, esfregando-a impetuosamente no tanque para depois estendê-la no varal sem perceber que eu já levantara.
Morávamos em uma casa pequena, paredes de alvenaria e chão de madeira, telhado de brasilit e banheiro externo. Tinha trinta metros quadrados, sala e cozinha numa peça apenas e dois quartos. Eu não tinha pai e meu irmão acordava tarde depois de uma noite dançando nos fandangos de sábado.
Na tela um homem de olhar sereno era focalizado pela câmera. Num movimento ele colocou uma coisa meio que de pano na cabeça, um capuz esquisito que disseram chamar-se balaclava, depois enfiou a cabeça no capacete apertado. Ajudaram-no a afivelar o cinto. Ele não estava na primeira posição de largada.
Tratava-se de uma corrida de automóveis que estava prestes a iniciar. Eu já assistira a algumas delas, talvez dezenas, mas nunca reparara exatamente em nada. Eu não era muito de reparar nas coisas. Eu não entendia bem o que acontecia a minha volta e eu não compreendia exatamente o que estavam mostrando na tevê. Só percebia que um tentava ultrapassar o outro para chegar primeiro.
Acontece que naquele dia eu finalmente enxerguei que não era só isso. Não se tratava apenas de vencer uma corrida. Não se tratava apenas de concluir uma etapa. Era mais que um esporte. E meu herói era mais que um homem.
Aparentemente um homem acelerou tudo o que podia e contornou curvas e apontou em retas e correu risco de bater em muros porque queria vencer. Porém não era só isso. Algo que me escapava no início da prova foi aos poucos ficando mais claro.
Eu era um garotinho raquítico com dentes semidesenvolvidos de rato, orelhas de abano e imensas de rato, barriga protuberante de vermes de rato, olhos redondos e grandes e inexpressivos de rato, jeito acanhado e tímido e assustado de rato. Minha professora da pré-escola dizia que eu não tinha condições de acompanhar a turma e que era melhor eu ficar mais um ano antes de ir para a primeira série. Eu voltava para casa da escola ao meio dia, a pé, caminhava três quilômetros em estrada de chão batido comendo a poeira levantada pelos carros, requentava a comida que minha mãe deixara pronta, almoçava em silêncio de frente para o meu irmão de catorze anos que chegara do trabalho e partiria novamente meia hora depois em sua bicicleta monareta, lavava a louça e depois passava a tarde vendo tevê sem prestar atenção aos filmes da sessão da tarde embasbacado com as imagens em preto e branco na tela de catorze polegadas.
Enquanto isso um homem se preparava para vencer corridas a mais de trezentos por hora por uma razão maior do que a vitória.
Naquele domingo, quando meu herói cruzou a linha de chegada, entendi que não era só isso.
Foi uma corrida difícil. Meu herói teve de ultrapassar muitos carros, superar a adversidade da chuva que para ele parecia não ser um problema e sim uma solução. Metros depois da chegada, parou o carro e pegou uma bandeira que lhe ofereciam. Eu conhecia aquela bandeira. Era a bandeira de um país que diziam que era o meu país, ainda que eu nunca o tivesse visto de verdade tampouco o país tivesse feito algo por mim. Mas não era só isso.
Enquanto meu herói dava uma volta inteira acenando a bandeira eu entendi que não era para as pessoas da arquibancada, não era para os cinegrafistas da tevê, não era para uma pátria inteira que ele erguia o punho com a bandeira apertada na mão. A bandeira era só um símbolo, uma abstração. Não significava o que era, e também não significava um país nem um povo. Ele balançou a bandeira para afastar a névoa de meus olhos e fazer-me ver.
Fazer-me ver que vencera por mim.
Porque meu herói sabia que em algum lugar um garotinho encolhia-se em si mesmo como um rato. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho olhava sem ver e não entendia. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho não tinha um herói. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho precisava que ele vencesse e acenasse uma bandeira como quem dissesse olha, garoto, eu venci, e foi por você.
Minha mãe entrou em casa e disse oi, filho, e eu disse oi, mãe. Quem ganhou a corrida, ela perguntou e eu ainda não sabia responder com um nome mas sentia que algo acontecera.
Demorou duas semanas para a próxima prova. Tempo suficiente para eu descobrir que não era só eu que assistira àquela corrida. Tinha muita gente acompanhando as vitórias de meu herói. Um país inteiro. Gente do mundo todo. Garotos de todas as idades de várias partes do mundo devem tê-lo visto naquele domingo. E no outro, duas semanas depois, quando novamente venceu. E devem ter acompanhado suas derrotas. A batida contra o muro quando liderava com folga. A derrapagem. A pane seca. Os problemas no motor. O furo do pneu. A batida contra o companheiro de equipe quando este o jogou para fora da corrida. A desclassificação injusta de uma prova que ele vencera no braço, na raça e na coragem, e que perdeu no tapetão.
E eu não me importava de dividir meu herói com toda essa gente. Porque ele era tão grande, tão valente, que cabia inteiro no coração de todo mundo sem deixar de ser meu herói. Gente de toda parte comemorava suas vitórias e lamentava suas derrotas. E eu sentia que suas vitórias eram por mim e que sua tristeza quando não vencia era porque sabia que não vencera por mim. E eu queria poder dizer-lhe que não precisava ficar triste porque eu estava aprendendo que a vida é assim.
O país vivia uma situação complicada, com miséria por toda a parte, desemprego, pessoas morrendo de fome e uma democracia que engatinhava depois de uma longa e violenta ditadura porque toda ditadura é violenta e mesmo que dure um dia já foi longa demais. Minha mãe trabalhava o dia inteiro e recebia um salário que mal dava para pagar a comida que punha na mesa, e que era limitada. Por isso meu irmão trabalhava, também o dia inteiro, para receber menos ainda. O país arrastava cem anos de atraso, com homens recebendo pouco, mulheres recebendo menos e adolescentes quase nada. Trabalhava-se praticamente de sol a sol e a escola terminava na quinta série, momento em que meu irmão abandonou os estudos.
Eu era de uma geração que brincava nas ruas com bola de meia, mas ninguém me escalava para o time. Eu era de uma geração que brincava de carrinhos de lata, mas eu os arrastava sempre sozinho. Eu era de uma geração que apanhava bergamotas no pé, mas eu não tinha amigos para ver quem cuspia a semente mais longe. Eu era de uma geração com sonhos e esperança de um país melhor, mas isso porque o país era uma merda.
O mundo, por sua vez, comemorava a queda do muro de Berlim. Eu não sabia o que isso significava, mas pensava como devia haver gente rica no mundo para que alguém pudesse construir um muro tão alto e tão grande em volta de uma propriedade tão imensa como um país inteiro.
Enquanto isso meu herói era quem passava mais perto dos muros em Mônaco. Houvesse chuva ou sol e independentemente da posição em que ele largava e de todos dizerem que não dava para passar em Mônaco, meu herói era sempre o favorito. Ninguém passava, mas ele passava. E quando um carro muito mais rápido e muito melhor do que o dele tentava passá-lo, não passava, porque meu herói sabia defender-se como ninguém.
Como alguém podia andar tão rápido numa pista tão estreita, eu me perguntava. E ele vencia. Mais tarde eu soube que, anos antes, com um carro muito inferior, sob uma bruta chuva, ele passou todo mundo e venceu mas a direção disse que interrompera a prova e que valia o resultado de uma volta antes. Meu herói sofreu com as injustiças e lutou contra elas. Estas lutas ele perdeu, porque não era bom de conversa, era bom na pista. Vencia como tinha que vencer. Com ele não tinha jeitinho. Com ele não tinha papinho mole. Era acelerar e vencer. E pronto. Simples assim. Regra é regra e vence quem chega na frente. Quem chega atrás tem que melhorar e tentar na próxima. E pronto. Meu herói não representava como nós que o amávamos éramos. Ele representava o que todos nós queríamos ser. Não queríamos imitar seu corte de cabelo ou seu jeito de vestir ou suas tatuagens que ele não tinha. Queríamos o seu jeito de olhar. Queríamos o seu jeito de ser.
Meu herói rivalizou com outros grandes pilotos. Que no entanto nunca se mostraram grandes homens. Eram apaixonados por carros e velocidade, mas não tinham aquele olhar. Meu herói tinha olhos serenos de quem sabe sua responsabilidade e precisa manter o foco para não me decepcionar. Seu olhar era suave e no entanto penetrante, concentrado, e dentro de sua cabeça ele fazia o traçado ideal diversas vezes para depois repeti-lo na pista.
Quando meu herói era um garoto ele foi mal em uma corrida de kart quando começou a chover. Depois disso, toda vez que chovia ele corria para treinar. Tornou-se destemido, venceu o medo da pista escorregadia e por isso era capaz de explorar além do limite a velocidade possível no molhado. Treinou tanto que quando chovia ele era imbatível.
Meu herói queria vencer, e eu sentia que ele precisava fazê-lo por mim. Era pelo meu sorriso gritado numa vibração desmedida que ele acelerava e passava e vencia a todos.
Contudo havia os carros. O poder dos carros. A tecnologia desenvolvida por outra equipe deixou meu herói para trás num ano. Exceto em Mônaco, onde ele venceu deixando um dos rivais mais de quarenta voltas atrás dele, enlouquecido tentando ultrapassá-lo. Mas meu herói não deu espaço e o leão não passou. Porque em Mônaco o que valia mesmo era o braço, a coragem, o coração.
Esta outra equipe vencedora tinha um dono numa cadeira de rodas e eu pensava como podia um homem numa cadeira de rodas desenvolver um carro tão veloz e imbatível. Meu herói queria correr com aquela equipe e em 1994 ele foi para lá. Meu herói já fora tricampeão mundial e eu tinha doze anos. Porém a federação internacional mudou o regulamento. Era a principal categoria do automobilismo mundial e o regulamento mudara proibindo as inovações tecnológicas que aquela equipe fizera e que lhe dera tanto poder.
O carro desta vez não era bom. Andava desequilibrado, saía de frente e de traseira. Tinha um comportamento imprevisível como o de um touro bravo. E meu herói precisava domá-lo para voltar a vencer. Para voltar a sacudir a bandeira e mostrar que vencera por mim.
Meu herói não entendia como uma outra equipe podia estar tão na frente e trabalhou muito junto com engenheiros e mecânicos para transformar seu carro num carro vencedor. Meu herói sabia fazer parte.
Perderam uma corrida. Duas. Três. O carro rodava nas curvas. O carro balançava nas retas. O carro não concluía as provas. E por mais que meu herói se esforçasse, as coisas não iam bem.
Serenamente, no entanto, meu herói foi explicando o que estava errado. Os engenheiros projetaram mudanças. Os mecânicos as realizaram. O chefe da equipe confiava no que meu herói dizia. Todos confiavam naquele olhar e nas suas palavras mansas.
Meu herói não brigava exceto por posições na pista. Meu herói não batia em ninguém, não gritava, não prometia dar comida aos pobres, não dizia que acabaria com a miséria, a opressão, a seca ou a enchente. Meu herói não voava pelo ar com capa vermelha nem capturava monstros terríveis nem bolas douradas com asas. Meu herói só andava de carro. Mas fazia-o de tal modo, com tanta garra e coragem e vontade de vencer que valia mais do que se voasse e me desse o pão que às vezes nos faltava. Ele alimentava meu espírito. Ele me dava um exemplo.
Nos treinos de sexta-feira um outro brasileiro bateu forte. Tão forte que foi proibido de correr novamente naquele fim de semana. No sábado um piloto que eu até então não conhecia, de uma equipe bem pequena que fechava o grid bateu forte e morreu. Meu herói olhou assustado. Anos antes ele parara no meio da pista para socorrer um piloto que batera. Desta vez, no entanto, não houve o que fazer. Foi estranho ver que se morria daquela maneira.
Meu herói concentrou-se como pôde e fez a pole position. Apesar disso, ninguém sabia se ele correria no domingo. Seu olhar estava diferente. Como podia alguém morrer assim, ele se perguntava. O que há de errado para que isso aconteça, ele devia estar questionando com os colegas. Devemos correr depois de um amigo esmagar-se contra um muro e morrer.
Antes da largada, havia medo em seus olhos e ao mesmo tempo um certo sentimento que não sei explicar. Pela primeira vez no ano ele liderava uma corrida. Dominara o touro bravo e aceleraria sobre seu dorso nas retas e curvas de Ímola.
E assim, liderando a prova, no lugar em que ele se sentia tão à vontade e pelo qual ele sempre lutava tanto para vencer por mim, meu herói perdeu o controle do carro por um motivo jamais descoberto, saiu da pista e ao bater contra o muro recebeu na cabeça o impacto de uma barra de suspensão que quebrou e voou contra ele liquefazendo seu cérebro.
Quando os médicos o retiraram do carro seu corpo estava tenso e de repente, ao ser posto no solo, relaxou. Naquele momento seu espírito libertou-se e por um instante eu o vi acenando e despedindo-se, desculpando-se por que não vencera por mim.
O país inteiro chorou comigo e acompanhou com as faces lavadas em pranto o cortejo que o conduziu ao cemitério. O mundo inteiro acompanhou pela tevê, com lágrimas igualmente tristes. Meninos de todas as partes choraram como eu, e eu não tive vergonha de engasgar-me em pranto e soluçar e encolher-me num canto da parede.
Meu herói foi sepultado com as honras e com o choro de um mundo inteiro, como deve ocorrer com os heróis.
Morreu naquele dia primeiro de maio de 1994.
Já faz tanto tempo. E as lágrimas ainda correm no meu rosto e os soluços ainda obstruem minha garganta, pois parece que foi ontem. E meu filho me olha sem susto nem compreensão. Sua mente não entende e não há nenhum mistério plantado em seu coração.
Meu herói é uma lembrança viva e uma saudade constante. Meu herói plantou dentro de mim uma semente, e deixou uma geração inteira órfã de seu exemplo, da alegria de suas vitórias e da tristeza de suas derrotas. E eu não me envergonho de ainda hoje chorar por ele.
Porque toda vez que as curvas da vida me jogam pra fora, me batem com um muro na cara, me põem a perder ou quando eu mesmo perco, lá vem ele, tantantan, tantantan, e a voz do narrador se ergue entusiasmada pela música ao fundo, na última volta, lá vem ele, na ponta dos dedos, de ponta a ponta, as últimas curvas, aponta na reta, não perde mais, Ayrton, Ayrton, Ayrton Senna do Brasiiiiil vence o Grande Prêmio, ergue o punho e balança a bandeira.
Meu herói venceu mais uma. Eu voltei por um instante a ser o menino que deixou de ser um rato vendo-o vencer. Meu herói venceu e ergueu a bandeira. E é por mim que ele a balança. Por mim, e por todos nós.

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