sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O vestido amarelo


Em 1990 Miriam completava doze anos. Preparava-se portanto para sua primeira eucaristia. Depois de anos de catequese, receberia em suas mãos o corpo de Cristo e o levaria à boca para comungar diante de sua família orgulhosa e da comunidade inteira numa missa sempre cheia para assistir à homilia do bispo. A mãe preparava compotas desde o início da semana anterior, e branquinhos e cajuzinhos e brigadeiros dias antes, tarefa a que Miriam ajudava com a alegria de uma menina prestes a ingressar em uma nova fase de sua vida.
O pai reforçava a ração do bezerro que há um ano engordava para carnear e servir no domingo da festa. Os familiares já estavam todos convidados desde dois anos antes e nas idas ao bar seu João reforçava o convite aos vizinhos. A mãe por sua vez fazia-o no caminho do armazém ou no balcão deste. A festa da família assim ganhava corpo e pelos cálculos cerca de sessenta pessoas se fariam presentes, posto que ninguém ousaria faltar.
A catequese ocorria todos os sábados à tarde, das catorze às quinze e trinta. As lições semanais incluíam a leitura de trechos da Bíblia, exercícios de interpretação, encenações religiosas, doutrinas católicas, lista dos pecados capitais e mandamentos. Havia provas e notas, e ainda que ninguém pudesse ser reprovado quem não obtinha êxito nos exames era obrigado a ficar depois da hora e tomar lições particulares durante a semana até ficarem a saber o que deviam.
A catequista era uma senhora de setenta anos que ocupava a função de ministra da igreja. Dona Tereza era viúva, vestia saias e blusas cinzas e sapatos escuros em oposição aos cabelos alvíssimos. Não tinha filhos e se mostrava inflexível nas questões disciplinares, não admitindo nem um pio durante as aulas. Os pais e mães adoravam-na e as crianças a temiam. Conforme se esperava e era o certo.
Meninos e meninas compareciam com suas roupas domingueiras, os calçados bem lavados e os cabelos bem penteados. Chegavam cedo e se punham diante da igreja a esperar. Enquanto isso conversavam aos sussurros e, se riam, faziam-no baixinho para não perturbar o sossego de Deus, que repousava na sacristia.
Dona Tereza chegava pontualmente e abria a porta lateral da igreja. Postava-se na entrada e respondia muito tesa ao cumprimento de cada catequizando que entrava. Um a um eles e elas tomavam seus acentos nos bancos laterais da igreja, diante dos quais um quadro-mural servia de lousa. Antes de sentar punham sobre o apoiador as Bíblias que traziam no sovaco, ajoelhavam-se e rezavam por cinco minutos, ao fim dos quais aguardavam calados as ordens da professora.
Moravam em um bairro longe do centro em uma cidade distante da capital do estado. O município contava mais de trinta mil habitantes, mas a comunidade de imigrantes europeus em que viviam tinha pouco mais de mil pessoas. Todos se conheciam e os principais pontos de encontro eram a igreja, a praça, o bar do Hélio e o armazém do seu Juca.
Na turma de catequese de Miriam havia seis meninos e dez meninas.
Depois da catequese os alunos se dispersavam, mas era comum que os meninos se reencontrassem no futebol e no caso das meninas em visitas à casa das amigas. Ao final da última aula, contudo, as moças despediram-se e se recolheram todas a suas casas para auxiliar as mães no preparo dos confeitos.
Os meninos mantiveram a rotina do futebol.
A semana que antecedia a festa era cheia de preparativos e o armazém do seu Juca aproveitava para aumentar as vendas. Cada família organizava as suas comemorações, de modo que quase todos da comunidade estavam convidados para uma das churrascadas. Os habitantes eram em sua maioria pequenos produtores rurais e armavam mesas nos pátios de suas casas para receber as visitas.
Na véspera da festa a mãe de Miriam desdobrava-se entre a finalização das guloseimas, o preparo da maionese, a colheita das saladas e os últimos ajustes no vestido da filha. O pai carneou o bezerro com a ajuda do filho de catorze anos, destrinchou as partes para assar no domingo e antes que o sol se pusesse picou a lenha para o fogo. Em toda a comunidade o cheiro da carne e do sangue dos bezerros erguia miasmas como no tempo dos sacrifícios e o ruído dos machados desfazendo em achas as árvores era uma sonora vibração chamando a alegria para reinar no dia seguinte.
Miriam provou o vestido e posicionou-se para que a mãe finalizasse os últimos detalhes ajustando-o ao corpo da menina. Era um vestido amarelo, de uma cor suave mas marcante, rendas nas mangas, pregas rodadas largas e compridas até o joelho. Combinava perfeitamente com o loiro dos cabelos da menina, com seus olhos azuis e claros e com sua pele de um bege bem suave. Miriam achou-o lindo e surpreendeu-se bonita ao espelho fazendo pose e perguntou se não devia ser um vestido branco.
Você não está indo casar, respondeu a mãe. No entanto as outras meninas estavam de branco. Os rapazes usavam calça social preta, camisa branca, gravata e colete e calçavam sapatos bem lustrados combinando com o gel dos cabelos. Era curioso vê-los metidos naquela beca e enfiados em caras muito sérias.
E as meninas os achavam assim mais bonitos.
A catequista organizou-os em pares para entrarem na igreja, que estava lotada. O bispo iniciou a cerimônia e pediu que entrassem os catequizandos. Todos ergueram-se para recebê-los de pé e havia gente ocupando todos os bancos da igreja e faltavam lugares para um grande número de pessoas de pé pelos cantos.
Calhou que Miriam entrasse ao lado de Francisco.
Percorreram os vinte metros do corredor e se perfilaram em duas colunas ao lado do altar, em posição de destaque. Quando a hora chegou da eucaristia receberam a hóstia sagrada das mãos do bispo ao lado do padrinho e da madrinha, do pai e da mãe, enquanto todos cantavam prometi no meu santo batismo ser fiel a Jesus sem cessar, o que então meus padrinhos falaram hoje mesmo eu vim confirmar.
Miriam arrepiou-se como todos os outros ao sentir derreter-se em sua boca o corpo de Cristo.
A festa foi animada e Miriam divertiu-se e encheu-se de sorrisos para agradecer os presentes que lhe deram. Seu pai no entanto não gostou de terem dito então como é ter um preto na família, hahaha, em alusão ao fato de que Francisco era negro e entrara ao lado de Miriam e ao seu lado ficara durante a missa no local em que dona Teresa mandara. Por isso, ao final da festa seu João pegou o relho, entrou no quarto de Miriam, disse-lhe agora vamo vê se eu vô tê um preto na minha família, segurou-a por um braço e bateu-lhe com toda a força o relho em suas costas.
O vestido desfez-se em tiras e o sangue escorreu pela pele rasgada a cada relhaço. O pai não lhe poupava as costas e as pernas e Miriam logo viu que ele a mataria se ela não fugisse. Lutou para escapar e enquanto soltava-se levou um relhaço no peito que lhe pegou em cheio do pescoço ao seio e abriu-lhe de imediato um veio de sangue.
Aos gritos e soluços irrompeu porta afora e correu desatinada por dois quilômetros. Finalmente faltou-lhe o fôlego e olhou para trás. Ao ver que o pai não a seguia, parou. Chorou ainda mais intensamente ao olhar-se e ver-se em frangalhos, o vestido desfeito em trapos e tingido de sangue. As sapatilhas acumulavam o sangue nos calcanhares e se pegavam em suas meias manchadas. Para onde eu vou, desesperou-se e correu mais um quilômetro até a casa da avó materna.
Dona Maria era viúva, tinha dois filhos morando longe, mostrou-se animada na festa da neta e tomou um grande susto quando ouviu-a chamar vóóóó, vóóóó, pois percebeu-lhe de pronto o desespero. Meu Jesus o que te aconteceu, exclamou com as mãos na cabeça e escancarou rapidamente a porta para que a menina entrasse. Me ajuda vó por favor me ajuda, e dona Maria abraçou-a sem importar-se com o sangue que lhe mancharia as roupas bonitas que ainda não tirara.
Miriam acalmou-se ao fim de uma hora e dois copos de água com açúcar. Dona Maria sentou-a numa poltrona, acomodou-se como pôde ao seu lado, segurou sua mão e estreitou a cabeça da menina em seu regaço. Dizia-lhe pronto, pronto, já passou, ssss, ssss, pronto, pronto, ssss, ssss. Ele vai vim me pegar. Não, não vai, fique em paz que aqui você está segura, e as palavras da avó sossegaram a tremura da neta e pouco a pouco aquietaram-na até finalmente ela estar pronta para despir-se e lavar-se.
A avó aqueceu uma chaleira de água e trouxe uma bacia para o centro da casa. Com cuidado ajudou Miriam a tirar o vestido, que se colara aos ferimentos cujo sangue já secara. A água morna soltou o tecido da carne e quando Miriam estava nua sentiu frio. As feridas ardiam e ela voltou a tremer.
No dia seguinte teve febre. E no outro. E no outro.
Dona Maria passava os dias e noites ao seu lado, sentada à beira da cama em que aninhara a neta. Por uma semana Miriam esteve febril e suara e delirara mas dona Maria nunca pensou que talvez a neta morresse. Ela viveria e isso nem sempre lhe parecia bom.
Ao fim de um mês a mãe de Miriam apareceu, disse oi, mãe, sua bênção. Deus lhe abençoe, minha filha. Já é tempo de a Miriam voltar para casa. Cuide para que teu marido não a mate.
Miriam entrou em casa como um pombo assustado enfiando-se dentro das asas e o pai nunca mais a olhou nos olhos. Esteve a menina por dois anos a ponto de implodir-se de medo e cair no chão desconjuntada até o dia em que levou algumas roupas numa mala para o colégio do centro onde faria o magistério em regime de internato. De lá saiu três anos depois para ser professora e casar com Pedro, a quem conhecera nos corredores da escola. Ele fazia o curso técnico de contabilidade e depois de se formar logrou o quanto pôde seus clientes e patrões.
Quando Miriam foi para a casa dos pais levando os dois filhos pequenos e pedindo pelo amor de Deus que a deixassem viver com eles ouviu do pai que preferia vê-la morta a ter uma filha separada. Então Miriam pegou um filho em cada braço e retornou para a casa do marido engasgando-se com suas lágrimas. Os filhos acompanhavam seu pranto com seu berreiro pueril sem no entanto compartilhar de sua dor.
Resignou-se, ajoelhou diante da imagem de Cristo na cruz, pensou que seu destino era sofrer e rezou pedindo dai-me forças, meu Deus, ajuda-me a aguentar o peso da cruz que me botas nas costas. O marido renegou-a e disse que fosse dormir no quarto dos guris que com ela ele não deitaria mais. E o suplício que ele achou que lhe impingia foi-lhe um refrigério que ela atribuiu à benevolência divina.
O dinheiro que Miriam recebia era pouco e o marido quase nada trazia para casa. Gastava o que tinha com putas e farras. Os filhos cresciam e no entanto o amavam como o herói que ele lhes parecia. Dois meninos que o viram morrer quando o mais velho tinha dezoito anos e o mais novo dezesseis.
Miriam vestiu uma de suas roupas cinzas sem se atinar que o preto cairia melhor ao luto. Já lhe haviam prevenido disso quando o pai morrera, cinco anos antes. Desde que seu vestido amarelo da primeira comunhão manchara-se de sangue ela nunca mais pusera no corpo algo de cor que não fosse cinza ou marrom.
No velório todos cochichavam que bom para a Miriam que o Pedro morreu, ele não valia nada e ainda ficou me devendo. Só os filhos choravam em silêncio a perda do pai, enquanto a viúva permanecia hirta com os olhos postos no caixão e a mente se perguntando como seria agora a vida.
No dia seguinte começaram a aparecer os cobradores com o dedo em riste descompondo-a com impropérios e imprecando xingamentos contra o morto mas que isso não ia ficar assim, ele devia e quem ficara que pagasse e houve até quem ameaçasse de morte a pobre da Miriam que tratou de vender o que lhe coubera da herança que o pai deixara para poder saldar parte da dívida que o marido semeara pela cidade e cujos credores agora apareciam abanando apólices e talões e notas que Pedro não pagara ou cujo pagamento falsificara para embolsar o dinheiro que patrões e clientes lhe confiavam.
Um dia, porém, Carlos encontrou Miriam fazendo compras no supermercado. Sorriu e disse olá, Miriam, como vai. Conversou com ela como o amigo que fora e em dez minutos Miriam surpreendeu-se desarmada lembrando da escola no tempo da quinta série e esboçou um sorriso quando Carlos convidou-a para jantar. Ele disse seria um prazer reencontrar aquela menina que falou que eu estava ficando gordo e trocou o pão do meu lanche por uma maçã. Eu estava louca para provar o presunto do teu sanduíche, ela então sorriu e aceitou o convite sem pensar em mentir que aquela menina morrera.
Carlos rondara a casa de dona Maria enquanto Miriam se escondia e fora um bom amigo em não insistir em vê-la e houve um tempo em que disseram que ele era gay, posto que não cabiam em um homem aqueles jeitos tão gentis, o asseio no vestir mesmo em dias de semana e a solteirice que não buscava mulher para aplacar as ânsias que um homem de verdade deveria ter. Miriam no entanto não fermentava essas fofocas e ouvia-as em silêncio. Guardava na memória a amizade e pouco se lhe davam as preferências de Carlos, uma vez que desde que ela casara não falara mais com ele.
Agora que o vira concluiu que se enganavam. Era doce e sorriu-lhe com ternura e olhos calmos. E mesmo assim era homem para olhar-lhe na cara e convidá-la para jantar.
Miriam saiu do supermercado sem comprar nada. Andou até o centro e passeou pelo calçadão, lentamente, namorando as vitrines. Há muito tempo que não comprava roupas. Nem para os filhos, que trabalhavam e davam a seus armários o conteúdo que queriam.
Parou diante de uma loja e fitou uma manequim. Havia nela algo estranhamente mágico. Miriam sentiu que suas narinas dilataram-se e puxaram mais ar do que estava acostumada. Sorveu-o. Com delícia surpreendeu-o encher seus pulmões. E viu que aquilo era bom.
Entrou na loja e ao sair tinha as roupas cinzas que usava dentro de uma sacola.
A manequim da vitrine estava nua.
Miriam voltou para casa usando um lindo vestido amarelo.
Que brilhava.
Como o sol.
De um novo dia.

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