Em 1990 Miriam completava doze
anos. Preparava-se portanto para sua primeira eucaristia. Depois de
anos de catequese, receberia em suas mãos o corpo de Cristo e o
levaria à boca para comungar diante de sua família orgulhosa e da
comunidade inteira numa missa sempre cheia para assistir à homilia
do bispo. A mãe preparava compotas desde o início da semana
anterior, e branquinhos e cajuzinhos e brigadeiros dias antes, tarefa
a que Miriam ajudava com a alegria de uma menina prestes a ingressar
em uma nova fase de sua vida.
O pai reforçava a ração do
bezerro que há um ano engordava para carnear e servir no domingo da
festa. Os familiares já estavam todos convidados desde dois anos
antes e nas idas ao bar seu João reforçava o convite aos vizinhos.
A mãe por sua vez fazia-o no caminho do armazém ou no balcão
deste. A festa da família assim ganhava corpo e pelos cálculos
cerca de sessenta pessoas se fariam presentes, posto que ninguém
ousaria faltar.
A catequese ocorria todos os
sábados à tarde, das catorze às quinze e trinta. As lições
semanais incluíam a leitura de trechos da Bíblia, exercícios de
interpretação, encenações religiosas, doutrinas católicas, lista
dos pecados capitais e mandamentos. Havia provas e notas, e ainda que
ninguém pudesse ser reprovado quem não obtinha êxito nos exames
era obrigado a ficar depois da hora e tomar lições particulares
durante a semana até ficarem a saber o que deviam.
A catequista era uma senhora de
setenta anos que ocupava a função de ministra da igreja. Dona
Tereza era viúva, vestia saias e blusas cinzas e sapatos escuros em
oposição aos cabelos alvíssimos. Não tinha filhos e se mostrava
inflexível nas questões disciplinares, não admitindo nem um pio
durante as aulas. Os pais e mães adoravam-na e as crianças a
temiam. Conforme se esperava e era o certo.
Meninos e meninas compareciam com
suas roupas domingueiras, os calçados bem lavados e os cabelos bem
penteados. Chegavam cedo e se punham diante da igreja a esperar.
Enquanto isso conversavam aos sussurros e, se riam, faziam-no
baixinho para não perturbar o sossego de Deus, que repousava na
sacristia.
Dona Tereza chegava pontualmente
e abria a porta lateral da igreja. Postava-se na entrada e respondia
muito tesa ao cumprimento de cada catequizando que entrava. Um a um
eles e elas tomavam seus acentos nos bancos laterais da igreja,
diante dos quais um quadro-mural servia de lousa. Antes de sentar
punham sobre o apoiador as Bíblias que traziam no sovaco,
ajoelhavam-se e rezavam por cinco minutos, ao fim dos quais
aguardavam calados as ordens da professora.
Moravam em um bairro longe do
centro em uma cidade distante da capital do estado. O município
contava mais de trinta mil habitantes, mas a comunidade de imigrantes
europeus em que viviam tinha pouco mais de mil pessoas. Todos se
conheciam e os principais pontos de encontro eram a igreja, a praça,
o bar do Hélio e o armazém do seu Juca.
Na turma de catequese de Miriam
havia seis meninos e dez meninas.
Depois da catequese os alunos se
dispersavam, mas era comum que os meninos se reencontrassem no
futebol e no caso das meninas em visitas à casa das amigas. Ao final
da última aula, contudo, as moças despediram-se e se recolheram
todas a suas casas para auxiliar as mães no preparo dos confeitos.
Os meninos mantiveram a rotina do
futebol.
A semana que antecedia a festa
era cheia de preparativos e o armazém do seu Juca aproveitava para
aumentar as vendas. Cada família organizava as suas comemorações,
de modo que quase todos da comunidade estavam convidados para uma das
churrascadas. Os habitantes eram em sua maioria pequenos produtores
rurais e armavam mesas nos pátios de suas casas para receber as
visitas.
Na véspera da festa a mãe de
Miriam desdobrava-se entre a finalização das guloseimas, o preparo
da maionese, a colheita das saladas e os últimos ajustes no vestido
da filha. O pai carneou o bezerro com a ajuda do filho de catorze
anos, destrinchou as partes para assar no domingo e antes que o sol
se pusesse picou a lenha para o fogo. Em toda a comunidade o cheiro
da carne e do sangue dos bezerros erguia miasmas como no tempo dos
sacrifícios e o ruído dos machados desfazendo em achas as árvores
era uma sonora vibração chamando a alegria para reinar no dia
seguinte.
Miriam provou o vestido e
posicionou-se para que a mãe finalizasse os últimos detalhes
ajustando-o ao corpo da menina. Era um vestido amarelo, de uma cor
suave mas marcante, rendas nas mangas, pregas rodadas largas e
compridas até o joelho. Combinava perfeitamente com o loiro dos
cabelos da menina, com seus olhos azuis e claros e com sua pele de um
bege bem suave. Miriam achou-o lindo e surpreendeu-se bonita ao
espelho fazendo pose e perguntou se não devia ser um vestido branco.
Você não está indo casar,
respondeu a mãe. No entanto as outras meninas estavam de branco. Os
rapazes usavam calça social preta, camisa branca, gravata e colete e
calçavam sapatos bem lustrados combinando com o gel dos cabelos. Era
curioso vê-los metidos naquela beca e enfiados em caras muito
sérias.
E as meninas os achavam assim
mais bonitos.
A catequista organizou-os em
pares para entrarem na igreja, que estava lotada. O bispo iniciou a
cerimônia e pediu que entrassem os catequizandos. Todos ergueram-se
para recebê-los de pé e havia gente ocupando todos os bancos da
igreja e faltavam lugares para um grande número de pessoas de pé
pelos cantos.
Calhou que Miriam entrasse ao
lado de Francisco.
Percorreram os vinte metros do
corredor e se perfilaram em duas colunas ao lado do altar, em posição
de destaque. Quando a hora chegou da eucaristia receberam a hóstia
sagrada das mãos do bispo ao lado do padrinho e da madrinha, do pai
e da mãe, enquanto todos cantavam prometi no meu santo batismo ser
fiel a Jesus sem cessar, o que então meus padrinhos falaram hoje
mesmo eu vim confirmar.
Miriam arrepiou-se como todos os
outros ao sentir derreter-se em sua boca o corpo de Cristo.
A festa foi animada e Miriam
divertiu-se e encheu-se de sorrisos para agradecer os presentes que
lhe deram. Seu pai no entanto não gostou de terem dito então como é
ter um preto na família, hahaha, em alusão ao fato de que Francisco
era negro e entrara ao lado de Miriam e ao seu lado ficara durante a
missa no local em que dona Teresa mandara. Por isso, ao final da
festa seu João pegou o relho, entrou no quarto de Miriam, disse-lhe
agora vamo vê se eu vô tê um preto na minha família, segurou-a
por um braço e bateu-lhe com toda a força o relho em suas costas.
O vestido desfez-se em tiras e o
sangue escorreu pela pele rasgada a cada relhaço. O pai não lhe
poupava as costas e as pernas e Miriam logo viu que ele a mataria se
ela não fugisse. Lutou para escapar e enquanto soltava-se levou um
relhaço no peito que lhe pegou em cheio do pescoço ao seio e
abriu-lhe de imediato um veio de sangue.
Aos gritos e soluços irrompeu
porta afora e correu desatinada por dois quilômetros. Finalmente
faltou-lhe o fôlego e olhou para trás. Ao ver que o pai não a
seguia, parou. Chorou ainda mais intensamente ao olhar-se e ver-se em
frangalhos, o vestido desfeito em trapos e tingido de sangue. As
sapatilhas acumulavam o sangue nos calcanhares e se pegavam em suas
meias manchadas. Para onde eu vou, desesperou-se e correu mais um
quilômetro até a casa da avó materna.
Dona Maria era viúva, tinha dois
filhos morando longe, mostrou-se animada na festa da neta e tomou um
grande susto quando ouviu-a chamar vóóóó, vóóóó, pois
percebeu-lhe de pronto o desespero. Meu Jesus o que te aconteceu,
exclamou com as mãos na cabeça e escancarou rapidamente a porta
para que a menina entrasse. Me ajuda vó por favor me ajuda, e dona
Maria abraçou-a sem importar-se com o sangue que lhe mancharia as
roupas bonitas que ainda não tirara.
Miriam acalmou-se ao fim de uma
hora e dois copos de água com açúcar. Dona Maria sentou-a numa
poltrona, acomodou-se como pôde ao seu lado, segurou sua mão e
estreitou a cabeça da menina em seu regaço. Dizia-lhe pronto,
pronto, já passou, ssss, ssss, pronto, pronto, ssss, ssss. Ele vai
vim me pegar. Não, não vai, fique em paz que aqui você está
segura, e as palavras da avó sossegaram a tremura da neta e pouco a
pouco aquietaram-na até finalmente ela estar pronta para despir-se e
lavar-se.
A avó aqueceu uma chaleira de
água e trouxe uma bacia para o centro da casa. Com cuidado ajudou
Miriam a tirar o vestido, que se colara aos ferimentos cujo sangue já
secara. A água morna soltou o tecido da carne e quando Miriam estava
nua sentiu frio. As feridas ardiam e ela voltou a tremer.
No dia seguinte teve febre. E no
outro. E no outro.
Dona Maria passava os dias e
noites ao seu lado, sentada à beira da cama em que aninhara a neta.
Por uma semana Miriam esteve febril e suara e delirara mas dona Maria
nunca pensou que talvez a neta morresse. Ela viveria e isso nem
sempre lhe parecia bom.
Ao fim de um mês a mãe de
Miriam apareceu, disse oi, mãe, sua bênção. Deus lhe abençoe,
minha filha. Já é tempo de a Miriam voltar para casa. Cuide para
que teu marido não a mate.
Miriam entrou em casa como um
pombo assustado enfiando-se dentro das asas e o pai nunca mais a
olhou nos olhos. Esteve a menina por dois anos a ponto de
implodir-se de medo e cair no chão desconjuntada até o dia em que
levou algumas roupas numa mala para o colégio do centro onde faria o
magistério em regime de internato. De lá saiu três anos depois
para ser professora e casar com Pedro, a quem conhecera nos
corredores da escola. Ele fazia o curso técnico de contabilidade e
depois de se formar logrou o quanto pôde seus clientes e patrões.
Quando Miriam foi para a casa dos
pais levando os dois filhos pequenos e pedindo pelo amor de Deus que
a deixassem viver com eles ouviu do pai que preferia vê-la morta a
ter uma filha separada. Então Miriam pegou um filho em cada braço e
retornou para a casa do marido engasgando-se com suas lágrimas. Os
filhos acompanhavam seu pranto com seu berreiro pueril sem no
entanto compartilhar de sua dor.
Resignou-se, ajoelhou diante da
imagem de Cristo na cruz, pensou que seu destino era sofrer e rezou
pedindo dai-me forças, meu Deus, ajuda-me a aguentar o peso da cruz
que me botas nas costas. O marido renegou-a e disse que fosse dormir
no quarto dos guris que com ela ele não deitaria mais. E o suplício
que ele achou que lhe impingia foi-lhe um refrigério que ela
atribuiu à benevolência divina.
O dinheiro que Miriam recebia era
pouco e o marido quase nada trazia para casa. Gastava o que tinha com
putas e farras. Os filhos cresciam e no entanto o amavam como o herói
que ele lhes parecia. Dois meninos que o viram morrer quando o mais
velho tinha dezoito anos e o mais novo dezesseis.
Miriam vestiu uma de suas roupas
cinzas sem se atinar que o preto cairia melhor ao luto. Já lhe
haviam prevenido disso quando o pai morrera, cinco anos antes. Desde
que seu vestido amarelo da primeira comunhão manchara-se de sangue
ela nunca mais pusera no corpo algo de cor que não fosse cinza ou
marrom.
No velório todos cochichavam que
bom para a Miriam que o Pedro morreu, ele não valia nada e ainda
ficou me devendo. Só os filhos choravam em silêncio a perda do pai,
enquanto a viúva permanecia hirta com os olhos postos no caixão e a
mente se perguntando como seria agora a vida.
No dia seguinte começaram a
aparecer os cobradores com o dedo em riste descompondo-a com
impropérios e imprecando xingamentos contra o morto mas que isso não
ia ficar assim, ele devia e quem ficara que pagasse e houve até quem
ameaçasse de morte a pobre da Miriam que tratou de vender o que lhe
coubera da herança que o pai deixara para poder saldar parte da
dívida que o marido semeara pela cidade e cujos credores agora
apareciam abanando apólices e talões e notas que Pedro não pagara
ou cujo pagamento falsificara para embolsar o dinheiro que patrões e
clientes lhe confiavam.
Um dia, porém, Carlos encontrou
Miriam fazendo compras no supermercado. Sorriu e disse olá, Miriam,
como vai. Conversou com ela como o amigo que fora e em dez minutos
Miriam surpreendeu-se desarmada lembrando da escola no tempo da
quinta série e esboçou um sorriso quando Carlos convidou-a para
jantar. Ele disse seria um prazer reencontrar aquela menina que falou
que eu estava ficando gordo e trocou o pão do meu lanche por uma
maçã. Eu estava louca para provar o presunto do teu sanduíche, ela
então sorriu e aceitou o convite sem pensar em mentir que aquela
menina morrera.
Carlos rondara a casa de dona
Maria enquanto Miriam se escondia e fora um bom amigo em não
insistir em vê-la e houve um tempo em que disseram que ele era gay,
posto que não cabiam em um homem aqueles jeitos tão gentis, o
asseio no vestir mesmo em dias de semana e a solteirice que não
buscava mulher para aplacar as ânsias que um homem de verdade
deveria ter. Miriam no entanto não fermentava essas fofocas e
ouvia-as em silêncio. Guardava na memória a amizade e pouco se lhe
davam as preferências de Carlos, uma vez que desde que ela casara
não falara mais com ele.
Agora que o vira concluiu que se
enganavam. Era doce e sorriu-lhe com ternura e olhos calmos. E mesmo
assim era homem para olhar-lhe na cara e convidá-la para jantar.
Miriam saiu do supermercado sem
comprar nada. Andou até o centro e passeou pelo calçadão,
lentamente, namorando as vitrines. Há muito tempo que não comprava
roupas. Nem para os filhos, que trabalhavam e davam a seus armários
o conteúdo que queriam.
Parou diante de uma loja e fitou
uma manequim. Havia nela algo estranhamente mágico. Miriam sentiu
que suas narinas dilataram-se e puxaram mais ar do que estava
acostumada. Sorveu-o. Com delícia surpreendeu-o encher seus pulmões.
E viu que aquilo era bom.
Entrou na loja e ao sair tinha as
roupas cinzas que usava dentro de uma sacola.
A manequim da vitrine estava nua.
Miriam voltou para casa usando um
lindo vestido amarelo.
Que brilhava.
Como o sol.
De um novo dia.
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