sexta-feira, 28 de agosto de 2015
Saudação aos leitores
Neste blog você encontra alguns dos contos publicados em meus livros e tem a oportunidade de interagir, comentar os textos e opinar sobre eles.
Mas cuidado: alguns contos questionam certos limites, como violência, sexo, relações familiares, amor, e contêm linguagem pesada, com palavrões ou cenas subversivas e imorais. Se for ler, tenha em mente que o politicamente correto é o avesso de minhas pretensões literárias, porque Literatura, para mim, deve causar estranhamento e tirar o leitor de seu lugar-comum, desestabilizando nossas certezas.
Os livros, na íntegra, encontram-se à venda nas melhores livrarias de Estrela, Lajeado e Porto Alegre. Você também pode adquiri-los em formato e-book.
Um forte abraço e boa leitura a todos.
Maiquel
Por Miriam, com amor
Minha esposa e eu vivíamos um
amor risonho e doce nos idos de 2003. Éramos recém-casados após
dois anos de namoro e um curto período de noivado. Ambos contávamos
trinta anos, tínhamos bons empregos e nossos currículos incluíam
um mestrado no qual nos conhecêramos e um doutorado que marcou o
início de nosso relacionamento, após longos anos de acaloradas
discussões. Eu era um professor neoliberal empedernido que pensava
que a educação dependia de estudantes empenhados e de professores
com grande conhecimento para transmiti-lo. Ela odiava a palavra
transmissão e tinha um discurso pós-moderno que incorporava o
marxismo, os estudos culturais e tudo que colocava os estudantes
burros e preguiçosos como vítimas de um sistema opressor e de uma
escola excludente. Divergíamos em tudo até eu vê-la sorrir e
perceber que, embora eu nunca concordaria com ela em relação a
políticas educacionais, eu sempre quereria fazê-la sorrir daquela
maneira.
Apaixonei-me subitamente e não
perdi nem um segundo em convidá-la para sair. Disse-lhe esta noite
vamos deixar as polêmicas de lado e falar sobre nós, eu mal sei seu
nome e passei os últimos anos discordando de você. Ela se mostrou
amável e simpática. Nada que se assemelhasse à militante das
aulas. Eu levo a pós-modernidade a sério, disse ela, inclusive no
que diz respeito a mim mesma, não sou uma só, não sou única,
indivisível e especial, sou várias e gosto de poder ser assim,
múltipla. E se abriu em um sorriso que me convenceu de que, ao
contrário do que ela dissera, era único e a fazia absolutamente
especial.
Casamos em um sábado à tarde em
uma praça no centro da cidade. Não havia padre nem juiz, somente
amigos. Ela convidara os alunos, e eles compareceram às centenas.
Cada um trouxera bebidas, biscoitos e bolos caseiros. Eu vestira meu
melhor terno e ela chegou com um vestido branco de vinte reais, um
pequeno buquê de margaridas e uma fita no cabelo. Em todo o mundo
nunca houve noiva mais bela. Antes de beijá-la, duas lágrimas
desceram dos meus olhos e eu sussurrei olhando-a na alma eu te amo de
todo o meu coração. Ela ergueu-se na ponta dos pés que vestiam uma
sapatilha rasteirinha e disse a ti entrego hoje meu corpo e meu
espírito em sinal do meu amor.
Quando Miriam engravidou fiquei
como louco. Abracei-a apaixonadamente e a ergui no ar girando com ela
em êxtase, transportado de alegria. A notícia alcançou-me dois
meses depois de nos casarmos. Liguei para meus pais eufórico
noticiando-lhes que eu seria pai e o primeiro neto estaria em breve
chorando em seus braços. Eles sempre lamentaram a singelez do
casamento, ao qual faltaram, e nossos hábitos avessos a formalidades
e rituais. Mas comemoraram conosco brindando pelo futuro herdeiro.
Miriam floresceu como um ipê e
todos os dias converteram-se numa radiante primavera iluminada pelos
tenros sorrisos dela. Não houve enjoos nem cólicas nem
indisposições e maus humores. Minha esposa era uma dessas raras
mulheres a quem a gravidez deixava ainda mais bela. Sua barriga
cresceu sem pressa e sem estrias nem inchaços nos pés. Ela a
deixava à mostra em blusas que antes jamais usaria.
Ouvimos o coraçãozinho de nosso
filho bater e era como o galope insano de um cavalo, um pou pou pou
frenético e cheio de vida. Porém ao mesmo tempo tão delicado e
frágil. A médica disse que estava tudo bem e mostrou-se muito
simpática ao responder as perguntas que Miriam metralhava com uma
ingenuidade emocionante. Posso comer carne vermelha? É verdade que
preciso comer mais mesmo que eu não tenha fome? Posso dormir de
bruços? Eu e o meu marido, a gente pode, ahn, a gente ainda pode...
Que linda ela ficava tão bobinha, doutora em Letras e pré-escolar
em maternidade.
Eu me punha seguro no papel de
pai, segurando sua mão, sorrindo quando podia e pondo-me seriamente
atento quando devia. Conversávamos sobre tudo e líamos juntos as
revistas sobre gravidez e bebês.
Houve no entanto um dia em que o
semblante da médica crispou-se e uma nuvem escura pousou sobre nós.
O resultado de um exame apontava algo irregular. A médica folheou
alguma coisa procurando uma informação, conferiu o papel que lhe
apresentávamos, confrontou-o com algo escrito em um livro grosso e
solicitou novos exames.
Perguntamos o que havia e ela
disse que por hora não valia a pena nos pôr preocupados. Era melhor
realizar com urgência um exame específico para dirimir a dúvida.
Corremos ao laboratório e
fizemo-lo. Tratava-se de um procedimento complicado que deixou minha
esposa inquieta, para dizer o mínimo. Levou duas semanas para que o
resultado ficasse pronto e nesse tempo experimentamos uma angústia
sem paralelo em nossas vidas. Voltamos à médica com o envelope
lacrado, pois não queríamos antecipar nada. Já pesquisáramos a
respeito do exame e o que descobrimos sobre ele nos apontava
possibilidades desanimadoras.
Recebemos a confirmação
perplexos. Os olhos arregalados e os músculos tensos. Retesamo-nos
nas cadeiras que ocupávamos no consultório e percebi que não
suportaria o nó que se formara em meu peito. Súbito senti como se
algo batesse-me em cheio no meu estômago pondo-me sem ar.
Escureceu-se o dia e um pretume espesso invadiu-me os olhos e uma
tontura repentina levou-me ao chão.
Estive sem ar e sem tino,
despossuído de mim. Ao abrir os olhos Miriam fitava-me assombrada,
os olhos vidrados, enormes e vazios. Abria-se entre nós um abismo.
Ergui-me num átimo e saltei em seus braços. Enlacei seu corpo mas
não alcancei-lhe mais o espírito. Ficáramos em lados opostos da
fenda que cindira o mundo em dois.
Nosso filho nasceria, choraria
como os outros e como nós fizéramos, sujaria as fraldas e
engatinharia pelo chão, com atraso em relação aos outros e em
relação a nós quando bebês. Demoraria mais ainda para aprender a
falar, e, considerando a especificidade de seu caso, provavelmente
jamais aprenderia a ler nem escrever.
Miriam nunca se conformaria. Eu
já podia imaginá-la fazendo das tripas coração para inventar mil
formas diferentes de explicar-lhe o formato das letras e a
correspondência dos sons. Faria desenhos, comporia músicas,
encenaria esquetes, desenvolveria peças e equipamentos. Seria
incansável. Nunca desistiria de seu filho, como nunca desistia de um
aluno.
E esqueceria de mim.
O menino nasceu cercado de afeto
de duas famílias que fingiam ser uma só e se esforçavam para
disfarçar o desencanto. O menino reagia estranhamente aos estímulos,
sem compreendê-los. E sorria ao ouvir minha voz. Somente meus
dichotes tolos e minhas caretas, que sempre tinham desagradado
Miriam, punham-no a sorrir. Da primeira vez ela me pôs um olhar
desaprovador, imediatamente substituído por um sorriso entre um par
de lágrimas. Ele é lindo, ela disse. E eu então senti que o amava.
Dividíamos as tarefas como um
casal pós-moderno, mas Miriam parecia sempre mais assoberbada do que
eu. Ela não suportava as tarefas do lar e concentrava uma energia
incomum no trabalho. Preocupava-se com o rendimento de cada aluno,
sabia seus nomes, problemas familiares e angústias pessoais.
Consumia-se carregando com eles suas cruzes e inquietando-se com seus
dilemas. Eu a ouvia e ponderava, dizia-lhe que não era sua função
resolver problemas que não diziam respeito à aprendizagem dos
conteúdos de suas disciplinas, mas nisso ela jamais me ouvia.
O menino desde que saíra do
hospital era acompanhado por uma equipe multidisciplinar responsável
por atividades de estimulação. Que, no entanto, de pouco ou nada
valiam.
Quando ele fez sete anos fomos
obrigados a matriculá-lo em uma escola. Ela achava fundamental; eu
achava uma violência. Até então ele frequentara espaços
especializados e creches com propostas inclusivas. A escola
significava entrar em um mundo onde o aprendizado se dava segundo
critérios e metodologias voltados a um público cujas capacidades
nem de longe se assemelhavam às de nosso filho. Ele não sabia menos
do que os outros. Ele simplesmente não sabia nem poderia algum dia
saber. Mas Miriam nunca admitiria isso.
Até então ela confiara no
trabalho dos educadores especiais. Mas bastou matricular o menino
para que um caminhão de críticas fosse despejado sobre os ombros de
professores, direção, coleguinhas, pais, paredes, livros e
materiais.
Todos podem aprender, ela
teimava. Nosso filho só precisa de mais tempo e de outros métodos,
diferentes destes ranços pré-históricos excludentes,
discriminatórios, fascistas! E então ela ficava feia.
Com o tempo eu a olhava e já não
reconhecia. Não se parecia com a mulher com quem eu casara tampouco
com a estudante com quem eu discutia. Não havia mais abertura em seu
coração para discussões. Petrificadas em seu peito morriam
certezas azedadas por dez anos de frustrações. Quando o menino
completou uma década, ela ainda não fora capaz de ensinar-lhe a
escrever o próprio nome.
Ele nunca aprenderá a ler, não
é? A pergunta doeu em nós dois como uma facada. Sufoquei-me num
choro represado e solucei, fragilizado. Ela acompanhou-me com seu
pranto e misturamos nossas lágrimas abraçados na cama. Acariciei
seu cabelo e velei seu sono. No dia seguinte ela acordaria revigorada
para prosseguir seu trabalho de Sísifo lutando contra Deus, o Diabo
e o Mundo, defendendo nosso filho dos outros, impondo a todos e a si
mesma a aceitação de suas limitações e a adaptação a suas
necessidades. Todos e tudo deviam se adaptar a ele. E com isso eu
nunca me conformaria.
Meu filho não podia ser motivo
para que a escola se descuidasse dos outros. Para mim a inclusão
deveria valer para aleijados, cegos, surdos e qualquer pessoa que,
apesar de fisicamente limitada, estivesse cognitivamente apta a
aprender num ritmo, e agora a terra se abrirá para que o inferno
engula a mim e meu preconceito de direita, aprender num ritmo, eu
dizia, dentro do padrão médio da normalidade, veja lá o que isso
significa.
Eu levava o menino ao parque e
jogava com ele uma espécie de futebol. Sua coordenação motora
também era limitada e nem os times ele conseguia discernir. Mas
adorava brincar comigo. Ria com uma espontaneidade encantadora. Eu
não lhe corrigia nem orientava, apenas me divertia passando-lhe a
bola e dizendo bobagens para provocá-lo. E ele ria. Feliz.
A presença dos outros o acuava.
Miriam o deixava receoso, preocupado em aprender a próxima lição
para não decepcioná-la. Quando me via relaxava e sorria antevendo o
recreio. Eu não tentava ensinar-lhe nada, só queria que nos
divertíssemos junto como pai e filho. Ele não aprontava nada para
eu ter de repreendê-lo, então por que atormentá-lo com o que
estava além de suas forças?
Miriam e eu nunca conversamos
sobre as pílulas anticoncepcionais que ela passou a tomar depois que
o menino nasceu. Simplesmente sabíamos que não havia espaço para
outro.
Enquanto isso, eu e Miriam
tornávamo-nos estranhos. Deitávamos na cama e conversávamos ou
sobre o trabalho ou, no quase sempre das vezes, sobre o menino.
Nestas ocasiões eu ouvia e calava, sabendo que nada do que eu
dissesse seria aceito por ela, a menos que eu dissesse exatamente o
que ela pensava. Não valia a pena discutir e deixá-la ainda mais
feia.
Baldados eram todos os meus
esforços de fazê-la sorrir. O menino gargalhava e ela me olhava com
um ar de reprovação. Às vezes no entanto ela abrandava,
aproximava-se e num grande esforço participava do brinquedo. Mas seu
sorriso já não tinha brilho nem criava primaveras.
E foi então que uma ideia que
amadurecia escondida dentro de mim, oculta aos outros e a mim mesmo,
mostrou-se claramente. Travou-se em meu peito uma luta intensa que
escureceu meus olhos e jogou-me ao chão. Acordei com Miriam gritando
meu nome entre lágrimas desesperadas e o menino espremendo-se contra
a parede com olhos assustados, enormes e negros. A tontura era tanta
que um vômito espesso voou de minhas entranhas como se meu corpo
quisesse expulsar o demônio daquela ideia.
Uma semana depois, quando
obriguei-me a me olhar no espelho, percebi que eu estava feio. As
olheiras inchavam minha cara inteira e meus alunos olhavam-me
perplexos, incapazes de questionar-me o que acontecia. Passei a mão
pelo rosto espetando-me na barba. Toquei as lágrimas que
umedeciam-na. Ajoelhei-me, sentei-me ao lado da pia e chorei até
meus olhos de todo secarem.
Concluí que o menino precisava
morrer.
A semana seguinte dediquei à
pesquisa e aos preparativos. Enquanto lia sobre venenos e modos de
dissolvê-los e ministrá-los, fitava-o vendo tevê. Desenhos
animados, filmes de ação com explosões e brigas, esportes. Como
qualquer outra criança. Exceto porque, quando eu levantava para
sentar-me ao seu lado, ele só sabia me responder que estava olhando
tevê. E que filme é esse, meu filho? É de briga, pai. E mais do
que isso eu não conseguia fazê-lo entender. Quando eu explicava,
olhava-me fingindo entender, com os olhos a denunciar que nada
compreendera.
E contudo eu o amava. Porém
Miriam era um sonho materializado na forma de uma mulher. Um sonho do
qual eu percebia agora ser incapaz de desistir. Em uma das mãos eu
tinha o menino, na outra eu tinha a mulher de minha vida. Mas eu
precisava das duas mãos para segurar cada um destes sonhos. Era
portanto necessário escolher.
Numa tarde de terça-feira em que
eu estava a sós com o menino, num dia frio de inverno, ofereci-lhe
um chá quente e chocolate. Ele adorava chá e chocolate e ficou na
sala desenhando enquanto eu preparava tudo na cozinha. Esquentei a
água e depois coloquei os saquinhos de chá para dissolvê-los.
Servi duas xícaras, tirei do bolso o frasco com o veneno e despejei
em uma delas.
Mexi o chá e deixei a colherinha
dentro da xícara dele para não me confundir. Levei tudo em uma
bandeja, os chás e o chocolate.
Parei diante dele e olhei com
ternura seus olhos que brilhavam como os da mãe dez anos antes. Ele
era lindo e eu o amava. Queria estreitá-lo em meus braços e
protegê-lo do mundo, da obrigação de ir à escola, das regras da
Miriam. Queria vê-lo engordar empanturrado de chá e chocolate até
explodir numa de suas gargalhadas. Queria brincar com ele e curtir
alegremente sua eterna infância. Queria meu Peter Pan para sempre ao
meu lado. No entanto, meu querer a Miriam se impunha, dominante.
Queria tanto tê-la de volta. A
minha querida. Minha linda. O meu amor. Minha vida. Então servi ao
menino o chá. Ele estendeu-me as mãos sorrindo, pegou a xícara e
sorveu seu conteúdo ansiosamente.
O vestido amarelo
Em 1990 Miriam completava doze
anos. Preparava-se portanto para sua primeira eucaristia. Depois de
anos de catequese, receberia em suas mãos o corpo de Cristo e o
levaria à boca para comungar diante de sua família orgulhosa e da
comunidade inteira numa missa sempre cheia para assistir à homilia
do bispo. A mãe preparava compotas desde o início da semana
anterior, e branquinhos e cajuzinhos e brigadeiros dias antes, tarefa
a que Miriam ajudava com a alegria de uma menina prestes a ingressar
em uma nova fase de sua vida.
O pai reforçava a ração do
bezerro que há um ano engordava para carnear e servir no domingo da
festa. Os familiares já estavam todos convidados desde dois anos
antes e nas idas ao bar seu João reforçava o convite aos vizinhos.
A mãe por sua vez fazia-o no caminho do armazém ou no balcão
deste. A festa da família assim ganhava corpo e pelos cálculos
cerca de sessenta pessoas se fariam presentes, posto que ninguém
ousaria faltar.
A catequese ocorria todos os
sábados à tarde, das catorze às quinze e trinta. As lições
semanais incluíam a leitura de trechos da Bíblia, exercícios de
interpretação, encenações religiosas, doutrinas católicas, lista
dos pecados capitais e mandamentos. Havia provas e notas, e ainda que
ninguém pudesse ser reprovado quem não obtinha êxito nos exames
era obrigado a ficar depois da hora e tomar lições particulares
durante a semana até ficarem a saber o que deviam.
A catequista era uma senhora de
setenta anos que ocupava a função de ministra da igreja. Dona
Tereza era viúva, vestia saias e blusas cinzas e sapatos escuros em
oposição aos cabelos alvíssimos. Não tinha filhos e se mostrava
inflexível nas questões disciplinares, não admitindo nem um pio
durante as aulas. Os pais e mães adoravam-na e as crianças a
temiam. Conforme se esperava e era o certo.
Meninos e meninas compareciam com
suas roupas domingueiras, os calçados bem lavados e os cabelos bem
penteados. Chegavam cedo e se punham diante da igreja a esperar.
Enquanto isso conversavam aos sussurros e, se riam, faziam-no
baixinho para não perturbar o sossego de Deus, que repousava na
sacristia.
Dona Tereza chegava pontualmente
e abria a porta lateral da igreja. Postava-se na entrada e respondia
muito tesa ao cumprimento de cada catequizando que entrava. Um a um
eles e elas tomavam seus acentos nos bancos laterais da igreja,
diante dos quais um quadro-mural servia de lousa. Antes de sentar
punham sobre o apoiador as Bíblias que traziam no sovaco,
ajoelhavam-se e rezavam por cinco minutos, ao fim dos quais
aguardavam calados as ordens da professora.
Moravam em um bairro longe do
centro em uma cidade distante da capital do estado. O município
contava mais de trinta mil habitantes, mas a comunidade de imigrantes
europeus em que viviam tinha pouco mais de mil pessoas. Todos se
conheciam e os principais pontos de encontro eram a igreja, a praça,
o bar do Hélio e o armazém do seu Juca.
Na turma de catequese de Miriam
havia seis meninos e dez meninas.
Depois da catequese os alunos se
dispersavam, mas era comum que os meninos se reencontrassem no
futebol e no caso das meninas em visitas à casa das amigas. Ao final
da última aula, contudo, as moças despediram-se e se recolheram
todas a suas casas para auxiliar as mães no preparo dos confeitos.
Os meninos mantiveram a rotina do
futebol.
A semana que antecedia a festa
era cheia de preparativos e o armazém do seu Juca aproveitava para
aumentar as vendas. Cada família organizava as suas comemorações,
de modo que quase todos da comunidade estavam convidados para uma das
churrascadas. Os habitantes eram em sua maioria pequenos produtores
rurais e armavam mesas nos pátios de suas casas para receber as
visitas.
Na véspera da festa a mãe de
Miriam desdobrava-se entre a finalização das guloseimas, o preparo
da maionese, a colheita das saladas e os últimos ajustes no vestido
da filha. O pai carneou o bezerro com a ajuda do filho de catorze
anos, destrinchou as partes para assar no domingo e antes que o sol
se pusesse picou a lenha para o fogo. Em toda a comunidade o cheiro
da carne e do sangue dos bezerros erguia miasmas como no tempo dos
sacrifícios e o ruído dos machados desfazendo em achas as árvores
era uma sonora vibração chamando a alegria para reinar no dia
seguinte.
Miriam provou o vestido e
posicionou-se para que a mãe finalizasse os últimos detalhes
ajustando-o ao corpo da menina. Era um vestido amarelo, de uma cor
suave mas marcante, rendas nas mangas, pregas rodadas largas e
compridas até o joelho. Combinava perfeitamente com o loiro dos
cabelos da menina, com seus olhos azuis e claros e com sua pele de um
bege bem suave. Miriam achou-o lindo e surpreendeu-se bonita ao
espelho fazendo pose e perguntou se não devia ser um vestido branco.
Você não está indo casar,
respondeu a mãe. No entanto as outras meninas estavam de branco. Os
rapazes usavam calça social preta, camisa branca, gravata e colete e
calçavam sapatos bem lustrados combinando com o gel dos cabelos. Era
curioso vê-los metidos naquela beca e enfiados em caras muito
sérias.
E as meninas os achavam assim
mais bonitos.
A catequista organizou-os em
pares para entrarem na igreja, que estava lotada. O bispo iniciou a
cerimônia e pediu que entrassem os catequizandos. Todos ergueram-se
para recebê-los de pé e havia gente ocupando todos os bancos da
igreja e faltavam lugares para um grande número de pessoas de pé
pelos cantos.
Calhou que Miriam entrasse ao
lado de Francisco.
Percorreram os vinte metros do
corredor e se perfilaram em duas colunas ao lado do altar, em posição
de destaque. Quando a hora chegou da eucaristia receberam a hóstia
sagrada das mãos do bispo ao lado do padrinho e da madrinha, do pai
e da mãe, enquanto todos cantavam prometi no meu santo batismo ser
fiel a Jesus sem cessar, o que então meus padrinhos falaram hoje
mesmo eu vim confirmar.
Miriam arrepiou-se como todos os
outros ao sentir derreter-se em sua boca o corpo de Cristo.
A festa foi animada e Miriam
divertiu-se e encheu-se de sorrisos para agradecer os presentes que
lhe deram. Seu pai no entanto não gostou de terem dito então como é
ter um preto na família, hahaha, em alusão ao fato de que Francisco
era negro e entrara ao lado de Miriam e ao seu lado ficara durante a
missa no local em que dona Teresa mandara. Por isso, ao final da
festa seu João pegou o relho, entrou no quarto de Miriam, disse-lhe
agora vamo vê se eu vô tê um preto na minha família, segurou-a
por um braço e bateu-lhe com toda a força o relho em suas costas.
O vestido desfez-se em tiras e o
sangue escorreu pela pele rasgada a cada relhaço. O pai não lhe
poupava as costas e as pernas e Miriam logo viu que ele a mataria se
ela não fugisse. Lutou para escapar e enquanto soltava-se levou um
relhaço no peito que lhe pegou em cheio do pescoço ao seio e
abriu-lhe de imediato um veio de sangue.
Aos gritos e soluços irrompeu
porta afora e correu desatinada por dois quilômetros. Finalmente
faltou-lhe o fôlego e olhou para trás. Ao ver que o pai não a
seguia, parou. Chorou ainda mais intensamente ao olhar-se e ver-se em
frangalhos, o vestido desfeito em trapos e tingido de sangue. As
sapatilhas acumulavam o sangue nos calcanhares e se pegavam em suas
meias manchadas. Para onde eu vou, desesperou-se e correu mais um
quilômetro até a casa da avó materna.
Dona Maria era viúva, tinha dois
filhos morando longe, mostrou-se animada na festa da neta e tomou um
grande susto quando ouviu-a chamar vóóóó, vóóóó, pois
percebeu-lhe de pronto o desespero. Meu Jesus o que te aconteceu,
exclamou com as mãos na cabeça e escancarou rapidamente a porta
para que a menina entrasse. Me ajuda vó por favor me ajuda, e dona
Maria abraçou-a sem importar-se com o sangue que lhe mancharia as
roupas bonitas que ainda não tirara.
Miriam acalmou-se ao fim de uma
hora e dois copos de água com açúcar. Dona Maria sentou-a numa
poltrona, acomodou-se como pôde ao seu lado, segurou sua mão e
estreitou a cabeça da menina em seu regaço. Dizia-lhe pronto,
pronto, já passou, ssss, ssss, pronto, pronto, ssss, ssss. Ele vai
vim me pegar. Não, não vai, fique em paz que aqui você está
segura, e as palavras da avó sossegaram a tremura da neta e pouco a
pouco aquietaram-na até finalmente ela estar pronta para despir-se e
lavar-se.
A avó aqueceu uma chaleira de
água e trouxe uma bacia para o centro da casa. Com cuidado ajudou
Miriam a tirar o vestido, que se colara aos ferimentos cujo sangue já
secara. A água morna soltou o tecido da carne e quando Miriam estava
nua sentiu frio. As feridas ardiam e ela voltou a tremer.
No dia seguinte teve febre. E no
outro. E no outro.
Dona Maria passava os dias e
noites ao seu lado, sentada à beira da cama em que aninhara a neta.
Por uma semana Miriam esteve febril e suara e delirara mas dona Maria
nunca pensou que talvez a neta morresse. Ela viveria e isso nem
sempre lhe parecia bom.
Ao fim de um mês a mãe de
Miriam apareceu, disse oi, mãe, sua bênção. Deus lhe abençoe,
minha filha. Já é tempo de a Miriam voltar para casa. Cuide para
que teu marido não a mate.
Miriam entrou em casa como um
pombo assustado enfiando-se dentro das asas e o pai nunca mais a
olhou nos olhos. Esteve a menina por dois anos a ponto de
implodir-se de medo e cair no chão desconjuntada até o dia em que
levou algumas roupas numa mala para o colégio do centro onde faria o
magistério em regime de internato. De lá saiu três anos depois
para ser professora e casar com Pedro, a quem conhecera nos
corredores da escola. Ele fazia o curso técnico de contabilidade e
depois de se formar logrou o quanto pôde seus clientes e patrões.
Quando Miriam foi para a casa dos
pais levando os dois filhos pequenos e pedindo pelo amor de Deus que
a deixassem viver com eles ouviu do pai que preferia vê-la morta a
ter uma filha separada. Então Miriam pegou um filho em cada braço e
retornou para a casa do marido engasgando-se com suas lágrimas. Os
filhos acompanhavam seu pranto com seu berreiro pueril sem no
entanto compartilhar de sua dor.
Resignou-se, ajoelhou diante da
imagem de Cristo na cruz, pensou que seu destino era sofrer e rezou
pedindo dai-me forças, meu Deus, ajuda-me a aguentar o peso da cruz
que me botas nas costas. O marido renegou-a e disse que fosse dormir
no quarto dos guris que com ela ele não deitaria mais. E o suplício
que ele achou que lhe impingia foi-lhe um refrigério que ela
atribuiu à benevolência divina.
O dinheiro que Miriam recebia era
pouco e o marido quase nada trazia para casa. Gastava o que tinha com
putas e farras. Os filhos cresciam e no entanto o amavam como o herói
que ele lhes parecia. Dois meninos que o viram morrer quando o mais
velho tinha dezoito anos e o mais novo dezesseis.
Miriam vestiu uma de suas roupas
cinzas sem se atinar que o preto cairia melhor ao luto. Já lhe
haviam prevenido disso quando o pai morrera, cinco anos antes. Desde
que seu vestido amarelo da primeira comunhão manchara-se de sangue
ela nunca mais pusera no corpo algo de cor que não fosse cinza ou
marrom.
No velório todos cochichavam que
bom para a Miriam que o Pedro morreu, ele não valia nada e ainda
ficou me devendo. Só os filhos choravam em silêncio a perda do pai,
enquanto a viúva permanecia hirta com os olhos postos no caixão e a
mente se perguntando como seria agora a vida.
No dia seguinte começaram a
aparecer os cobradores com o dedo em riste descompondo-a com
impropérios e imprecando xingamentos contra o morto mas que isso não
ia ficar assim, ele devia e quem ficara que pagasse e houve até quem
ameaçasse de morte a pobre da Miriam que tratou de vender o que lhe
coubera da herança que o pai deixara para poder saldar parte da
dívida que o marido semeara pela cidade e cujos credores agora
apareciam abanando apólices e talões e notas que Pedro não pagara
ou cujo pagamento falsificara para embolsar o dinheiro que patrões e
clientes lhe confiavam.
Um dia, porém, Carlos encontrou
Miriam fazendo compras no supermercado. Sorriu e disse olá, Miriam,
como vai. Conversou com ela como o amigo que fora e em dez minutos
Miriam surpreendeu-se desarmada lembrando da escola no tempo da
quinta série e esboçou um sorriso quando Carlos convidou-a para
jantar. Ele disse seria um prazer reencontrar aquela menina que falou
que eu estava ficando gordo e trocou o pão do meu lanche por uma
maçã. Eu estava louca para provar o presunto do teu sanduíche, ela
então sorriu e aceitou o convite sem pensar em mentir que aquela
menina morrera.
Carlos rondara a casa de dona
Maria enquanto Miriam se escondia e fora um bom amigo em não
insistir em vê-la e houve um tempo em que disseram que ele era gay,
posto que não cabiam em um homem aqueles jeitos tão gentis, o
asseio no vestir mesmo em dias de semana e a solteirice que não
buscava mulher para aplacar as ânsias que um homem de verdade
deveria ter. Miriam no entanto não fermentava essas fofocas e
ouvia-as em silêncio. Guardava na memória a amizade e pouco se lhe
davam as preferências de Carlos, uma vez que desde que ela casara
não falara mais com ele.
Agora que o vira concluiu que se
enganavam. Era doce e sorriu-lhe com ternura e olhos calmos. E mesmo
assim era homem para olhar-lhe na cara e convidá-la para jantar.
Miriam saiu do supermercado sem
comprar nada. Andou até o centro e passeou pelo calçadão,
lentamente, namorando as vitrines. Há muito tempo que não comprava
roupas. Nem para os filhos, que trabalhavam e davam a seus armários
o conteúdo que queriam.
Parou diante de uma loja e fitou
uma manequim. Havia nela algo estranhamente mágico. Miriam sentiu
que suas narinas dilataram-se e puxaram mais ar do que estava
acostumada. Sorveu-o. Com delícia surpreendeu-o encher seus pulmões.
E viu que aquilo era bom.
Entrou na loja e ao sair tinha as
roupas cinzas que usava dentro de uma sacola.
A manequim da vitrine estava nua.
Miriam voltou para casa usando um
lindo vestido amarelo.
Que brilhava.
Como o sol.
De um novo dia.
Meu herói
Meu filho tem doze anos e assiste
impassível a um filme na tevê. Um garoto com poderes mágicos voa
numa vassoura atrás de uma bola dourada com asas. Meu filho parece
identificar-se com ele. Porém reparo em seu cabelo e uma espécie de
corte moicano procura reproduzir o estilo de um jogador de futebol. É
um cabelo igual ao de seus colegas da escola. E fui eu que o levei ao
barbeiro e concordei com a ideia para não frustrá-lo. Meu filho
quer ser jogador de futebol porque gosta de jogar bola e porque os
jogadores ganham muito dinheiro.
Eu sou professor e minha esposa é
bancária. Vivemos um casamento cheio de amor e não nos falta
harmonia. No entanto quando olho para meu filho não sinto nele
nenhum mistério. Há em seus olhos uma espécie de vazio, como se
faltasse alguma coisa em seu olhar. São dois olhos redondos, grandes
e bonitos e nada mais.
Eu jogo futebol com ele, agora
menos do que quando ele era menor. Agora ele tem mais autonomia para
fazer isso com seus amigos. Nós ainda andamos na mata desbravando
trilhas e desviando das aranhas. Andamos de bicicleta e fazemos o
dever de casa. Assistimos tevê juntos, esportes, filmes, notícias.
Lemos revistas e livros e jornais. No apartamento em que moramos
acumulamos uma bela biblioteca ampliada mensalmente. E no entanto meu
filho tem olhos sonsos de um menino que não teve herói.
Um dia me disseram pobre do país
que precisa de heróis e não sabiam o que estavam dizendo, porque
pobre do menino que não tem heróis. Pois garotos que voam em
vassouras não são heróis. Jogadores com gel no cabelo que recuam a
bola para o goleiro não são heróis.
Meu herói surgiu em 1988. Eu
tinha apenas seis anos mas ainda me lembro perfeitamente. Esta é, na
verdade, minha primeira lembrança. Aconteceu em um domingo de manhã.
Eu acordei, limpei os olhos com
os dedos e liguei a televisão. Minha mãe lavava a roupa lá fora,
esfregando-a impetuosamente no tanque para depois estendê-la no
varal sem perceber que eu já levantara.
Morávamos em uma casa pequena,
paredes de alvenaria e chão de madeira, telhado de brasilit e
banheiro externo. Tinha trinta metros quadrados, sala e cozinha numa
peça apenas e dois quartos. Eu não tinha pai e meu irmão acordava
tarde depois de uma noite dançando nos fandangos de sábado.
Na tela um homem de olhar sereno
era focalizado pela câmera. Num movimento ele colocou uma coisa meio
que de pano na cabeça, um capuz esquisito que disseram chamar-se
balaclava, depois enfiou a cabeça no capacete apertado. Ajudaram-no
a afivelar o cinto. Ele não estava na primeira posição de largada.
Tratava-se de uma corrida de
automóveis que estava prestes a iniciar. Eu já assistira a algumas
delas, talvez dezenas, mas nunca reparara exatamente em nada. Eu não
era muito de reparar nas coisas. Eu não entendia bem o que acontecia
a minha volta e eu não compreendia exatamente o que estavam
mostrando na tevê. Só percebia que um tentava ultrapassar o outro
para chegar primeiro.
Acontece que naquele dia eu
finalmente enxerguei que não era só isso. Não se tratava apenas de
vencer uma corrida. Não se tratava apenas de concluir uma etapa. Era
mais que um esporte. E meu herói era mais que um homem.
Aparentemente um homem acelerou
tudo o que podia e contornou curvas e apontou em retas e correu risco
de bater em muros porque queria vencer. Porém não era só isso.
Algo que me escapava no início da prova foi aos poucos ficando mais
claro.
Eu era um garotinho raquítico
com dentes semidesenvolvidos de rato, orelhas de abano e imensas de
rato, barriga protuberante de vermes de rato, olhos redondos e
grandes e inexpressivos de rato, jeito acanhado e tímido e assustado
de rato. Minha professora da pré-escola dizia que eu não tinha
condições de acompanhar a turma e que era melhor eu ficar mais um
ano antes de ir para a primeira série. Eu voltava para casa da
escola ao meio dia, a pé, caminhava três quilômetros em estrada de
chão batido comendo a poeira levantada pelos carros, requentava a
comida que minha mãe deixara pronta, almoçava em silêncio de
frente para o meu irmão de catorze anos que chegara do trabalho e
partiria novamente meia hora depois em sua bicicleta monareta, lavava
a louça e depois passava a tarde vendo tevê sem prestar atenção
aos filmes da sessão da tarde embasbacado com as imagens em preto e
branco na tela de catorze polegadas.
Enquanto isso um homem se
preparava para vencer corridas a mais de trezentos por hora por uma
razão maior do que a vitória.
Naquele domingo, quando meu herói
cruzou a linha de chegada, entendi que não era só isso.
Foi uma corrida difícil. Meu
herói teve de ultrapassar muitos carros, superar a adversidade da
chuva que para ele parecia não ser um problema e sim uma solução.
Metros depois da chegada, parou o carro e pegou uma bandeira que lhe
ofereciam. Eu conhecia aquela bandeira. Era a bandeira de um país
que diziam que era o meu país, ainda que eu nunca o tivesse visto de
verdade tampouco o país tivesse feito algo por mim. Mas não era só
isso.
Enquanto meu herói dava uma
volta inteira acenando a bandeira eu entendi que não era para as
pessoas da arquibancada, não era para os cinegrafistas da tevê, não
era para uma pátria inteira que ele erguia o punho com a bandeira
apertada na mão. A bandeira era só um símbolo, uma abstração.
Não significava o que era, e também não significava um país nem
um povo. Ele balançou a bandeira para afastar a névoa de meus olhos
e fazer-me ver.
Fazer-me ver que vencera por mim.
Porque meu herói sabia que em
algum lugar um garotinho encolhia-se em si mesmo como um rato. Meu
herói sabia que em algum lugar um garotinho olhava sem ver e não
entendia. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho não tinha
um herói. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho precisava
que ele vencesse e acenasse uma bandeira como quem dissesse olha,
garoto, eu venci, e foi por você.
Minha mãe entrou em casa e disse
oi, filho, e eu disse oi, mãe. Quem ganhou a corrida, ela perguntou
e eu ainda não sabia responder com um nome mas sentia que algo
acontecera.
Demorou duas semanas para a
próxima prova. Tempo suficiente para eu descobrir que não era só
eu que assistira àquela corrida. Tinha muita gente acompanhando as
vitórias de meu herói. Um país inteiro. Gente do mundo todo.
Garotos de todas as idades de várias partes do mundo devem tê-lo
visto naquele domingo. E no outro, duas semanas depois, quando
novamente venceu. E devem ter acompanhado suas derrotas. A batida
contra o muro quando liderava com folga. A derrapagem. A pane seca.
Os problemas no motor. O furo do pneu. A batida contra o companheiro
de equipe quando este o jogou para fora da corrida. A
desclassificação injusta de uma prova que ele vencera no braço, na
raça e na coragem, e que perdeu no tapetão.
E eu não me importava de dividir
meu herói com toda essa gente. Porque ele era tão grande, tão
valente, que cabia inteiro no coração de todo mundo sem deixar de
ser meu herói. Gente de toda parte comemorava suas vitórias e
lamentava suas derrotas. E eu sentia que suas vitórias eram por mim
e que sua tristeza quando não vencia era porque sabia que não
vencera por mim. E eu queria poder dizer-lhe que não precisava ficar
triste porque eu estava aprendendo que a vida é assim.
O país vivia uma situação
complicada, com miséria por toda a parte, desemprego, pessoas
morrendo de fome e uma democracia que engatinhava depois de uma longa
e violenta ditadura porque toda ditadura é violenta e mesmo que dure
um dia já foi longa demais. Minha mãe trabalhava o dia inteiro e
recebia um salário que mal dava para pagar a comida que punha na
mesa, e que era limitada. Por isso meu irmão trabalhava, também o
dia inteiro, para receber menos ainda. O país arrastava cem anos de
atraso, com homens recebendo pouco, mulheres recebendo menos e
adolescentes quase nada. Trabalhava-se praticamente de sol a sol e a
escola terminava na quinta série, momento em que meu irmão
abandonou os estudos.
Eu era de uma geração que
brincava nas ruas com bola de meia, mas ninguém me escalava para o
time. Eu era de uma geração que brincava de carrinhos de lata, mas
eu os arrastava sempre sozinho. Eu era de uma geração que apanhava
bergamotas no pé, mas eu não tinha amigos para ver quem cuspia a
semente mais longe. Eu era de uma geração com sonhos e esperança
de um país melhor, mas isso porque o país era uma merda.
O mundo, por sua vez, comemorava
a queda do muro de Berlim. Eu não sabia o que isso significava, mas
pensava como devia haver gente rica no mundo para que alguém pudesse
construir um muro tão alto e tão grande em volta de uma propriedade
tão imensa como um país inteiro.
Enquanto isso meu herói era quem
passava mais perto dos muros em Mônaco. Houvesse chuva ou sol e
independentemente da posição em que ele largava e de todos dizerem
que não dava para passar em Mônaco, meu herói era sempre o
favorito. Ninguém passava, mas ele passava. E quando um carro muito
mais rápido e muito melhor do que o dele tentava passá-lo, não
passava, porque meu herói sabia defender-se como ninguém.
Como alguém podia andar tão
rápido numa pista tão estreita, eu me perguntava. E ele vencia.
Mais tarde eu soube que, anos antes, com um carro muito inferior, sob
uma bruta chuva, ele passou todo mundo e venceu mas a direção disse
que interrompera a prova e que valia o resultado de uma volta antes.
Meu herói sofreu com as injustiças e lutou contra elas. Estas lutas
ele perdeu, porque não era bom de conversa, era bom na pista. Vencia
como tinha que vencer. Com ele não tinha jeitinho. Com ele não
tinha papinho mole. Era acelerar e vencer. E pronto. Simples assim.
Regra é regra e vence quem chega na frente. Quem chega atrás tem
que melhorar e tentar na próxima. E pronto. Meu herói não
representava como nós que o amávamos éramos. Ele representava o
que todos nós queríamos ser. Não queríamos imitar seu corte de
cabelo ou seu jeito de vestir ou suas tatuagens que ele não tinha.
Queríamos o seu jeito de olhar. Queríamos o seu jeito de ser.
Meu herói rivalizou com outros
grandes pilotos. Que no entanto nunca se mostraram grandes homens.
Eram apaixonados por carros e velocidade, mas não tinham aquele
olhar. Meu herói tinha olhos serenos de quem sabe sua
responsabilidade e precisa manter o foco para não me decepcionar.
Seu olhar era suave e no entanto penetrante, concentrado, e dentro de
sua cabeça ele fazia o traçado ideal diversas vezes para depois
repeti-lo na pista.
Quando meu herói era um garoto
ele foi mal em uma corrida de kart quando começou a chover. Depois
disso, toda vez que chovia ele corria para treinar. Tornou-se
destemido, venceu o medo da pista escorregadia e por isso era capaz
de explorar além do limite a velocidade possível no molhado.
Treinou tanto que quando chovia ele era imbatível.
Meu herói queria vencer, e eu
sentia que ele precisava fazê-lo por mim. Era pelo meu sorriso
gritado numa vibração desmedida que ele acelerava e passava e
vencia a todos.
Contudo havia os carros. O poder
dos carros. A tecnologia desenvolvida por outra equipe deixou meu
herói para trás num ano. Exceto em Mônaco, onde ele venceu
deixando um dos rivais mais de quarenta voltas atrás dele,
enlouquecido tentando ultrapassá-lo. Mas meu herói não deu espaço
e o leão não passou. Porque em Mônaco o que valia mesmo era o
braço, a coragem, o coração.
Esta outra equipe vencedora tinha
um dono numa cadeira de rodas e eu pensava como podia um homem numa
cadeira de rodas desenvolver um carro tão veloz e imbatível. Meu
herói queria correr com aquela equipe e em 1994 ele foi para lá.
Meu herói já fora tricampeão mundial e eu tinha doze anos. Porém
a federação internacional mudou o regulamento. Era a principal
categoria do automobilismo mundial e o regulamento mudara proibindo
as inovações tecnológicas que aquela equipe fizera e que lhe dera
tanto poder.
O carro desta vez não era bom.
Andava desequilibrado, saía de frente e de traseira. Tinha um
comportamento imprevisível como o de um touro bravo. E meu herói
precisava domá-lo para voltar a vencer. Para voltar a sacudir a
bandeira e mostrar que vencera por mim.
Meu herói não entendia como uma
outra equipe podia estar tão na frente e trabalhou muito junto com
engenheiros e mecânicos para transformar seu carro num carro
vencedor. Meu herói sabia fazer parte.
Perderam uma corrida. Duas. Três.
O carro rodava nas curvas. O carro balançava nas retas. O carro não
concluía as provas. E por mais que meu herói se esforçasse, as
coisas não iam bem.
Serenamente, no entanto, meu
herói foi explicando o que estava errado. Os engenheiros projetaram
mudanças. Os mecânicos as realizaram. O chefe da equipe confiava no
que meu herói dizia. Todos confiavam naquele olhar e nas suas
palavras mansas.
Meu herói não brigava exceto
por posições na pista. Meu herói não batia em ninguém, não
gritava, não prometia dar comida aos pobres, não dizia que acabaria
com a miséria, a opressão, a seca ou a enchente. Meu herói não
voava pelo ar com capa vermelha nem capturava monstros terríveis nem
bolas douradas com asas. Meu herói só andava de carro. Mas fazia-o
de tal modo, com tanta garra e coragem e vontade de vencer que valia
mais do que se voasse e me desse o pão que às vezes nos faltava.
Ele alimentava meu espírito. Ele me dava um exemplo.
Nos treinos de sexta-feira um
outro brasileiro bateu forte. Tão forte que foi proibido de correr
novamente naquele fim de semana. No sábado um piloto que eu até
então não conhecia, de uma equipe bem pequena que fechava o grid
bateu forte e morreu. Meu herói olhou assustado. Anos antes ele
parara no meio da pista para socorrer um piloto que batera. Desta
vez, no entanto, não houve o que fazer. Foi estranho ver que se
morria daquela maneira.
Meu herói concentrou-se como
pôde e fez a pole position. Apesar disso, ninguém sabia se ele
correria no domingo. Seu olhar estava diferente. Como podia alguém
morrer assim, ele se perguntava. O que há de errado para que isso
aconteça, ele devia estar questionando com os colegas. Devemos
correr depois de um amigo esmagar-se contra um muro e morrer.
Antes da largada, havia medo em
seus olhos e ao mesmo tempo um certo sentimento que não sei
explicar. Pela primeira vez no ano ele liderava uma corrida. Dominara
o touro bravo e aceleraria sobre seu dorso nas retas e curvas de
Ímola.
E assim, liderando a prova, no
lugar em que ele se sentia tão à vontade e pelo qual ele sempre
lutava tanto para vencer por mim, meu herói perdeu o controle do
carro por um motivo jamais descoberto, saiu da pista e ao bater
contra o muro recebeu na cabeça o impacto de uma barra de suspensão
que quebrou e voou contra ele liquefazendo seu cérebro.
Quando os médicos o retiraram do
carro seu corpo estava tenso e de repente, ao ser posto no solo,
relaxou. Naquele momento seu espírito libertou-se e por um instante
eu o vi acenando e despedindo-se, desculpando-se por que não vencera
por mim.
O país inteiro chorou comigo e
acompanhou com as faces lavadas em pranto o cortejo que o conduziu ao
cemitério. O mundo inteiro acompanhou pela tevê, com lágrimas
igualmente tristes. Meninos de todas as partes choraram como eu, e eu
não tive vergonha de engasgar-me em pranto e soluçar e encolher-me
num canto da parede.
Meu herói foi sepultado com as
honras e com o choro de um mundo inteiro, como deve ocorrer com os
heróis.
Morreu naquele dia primeiro de
maio de 1994.
Já faz tanto tempo. E as
lágrimas ainda correm no meu rosto e os soluços ainda obstruem
minha garganta, pois parece que foi ontem. E meu filho me olha sem
susto nem compreensão. Sua mente não entende e não há nenhum
mistério plantado em seu coração.
Meu herói é uma lembrança viva
e uma saudade constante. Meu herói plantou dentro de mim uma
semente, e deixou uma geração inteira órfã de seu exemplo, da
alegria de suas vitórias e da tristeza de suas derrotas. E eu não
me envergonho de ainda hoje chorar por ele.
Porque toda vez que as curvas da
vida me jogam pra fora, me batem com um muro na cara, me põem a
perder ou quando eu mesmo perco, lá vem ele, tantantan, tantantan, e
a voz do narrador se ergue entusiasmada pela música ao fundo, na
última volta, lá vem ele, na ponta dos dedos, de ponta a ponta, as
últimas curvas, aponta na reta, não perde mais, Ayrton, Ayrton,
Ayrton Senna do Brasiiiiil vence o Grande Prêmio, ergue o punho e
balança a bandeira.
Meu herói venceu mais uma. Eu
voltei por um instante a ser o menino que deixou de ser um rato
vendo-o vencer. Meu herói venceu e ergueu a bandeira. E é por mim
que ele a balança. Por mim, e por todos nós.
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
Matar um cão
Matar um cão nem sempre é uma tarefa fácil. Há várias
circunstâncias que colaboram ou prejudicam o sacrifício do animal:
tamanho do bixo, idade, peso, vitalidade, tamanho da enxada com a
qual se bate em sua cabeça, horário da execução, força e
precisão do golpe. É no entanto o dono do cachorro o fator
determinante: quando o dono é desconhecido, em geral basta uma
pancada; quando o dono é quem executa, a coisa se complica.
A primeira vez que tive consciência do sofrimento de um animal foi
na infância, contava eu nove anos. Meu tio criava galinha e
trouxe-me um pinto na palma da mão. Disse-me que era um pobre
animalzinho aleijado e pediu-me que eu abreviasse seu sofrimento,
pois ele não conseguiria sobreviver entre os pintos normais. Falou
que tinha pena do bichinho e que não tinha coragem de matá-lo.
Alcançou-mo e disse mata-o como achar melhor.
Eu o apanhei de sua mão com todo o cuidado. Analisei suas patas
fraturadas e detive-me em seus olhos que me fitavam de um modo
bastante singular, como nunca alguém me havia fitado antes. Sua
plumagem era macia, de um amarelo claro, e seu bico piava a
intervalos regulares um piu discreto e triste. Entendi que ele sofria
e que, conforme dissera meu tio, que se retirara, meu gesto seria
piedoso, um favor que eu faria àquela pequenina ave.
Ergui-o acima de minha cabeça, estiquei o braço e lancei-o contra o
solo o mais violentamente que pude. O pintinho estalou no chão e
morreu.
Antes disso eu judiara de moscas como todo menino normal.
Capturava-as com uma armadilha muito simples feita com um saco
plástico, água e açúcar, ou usava minhas próprias mãos em
concha para surpreendê-las pousadas sobre a mesa. Eu as mantinha em
saquinhos transparentes e experimentava diversas brincadeiras,
vulgarmente classificadas como torturas: de umas arrancava as asas,
de outras além das asas retirava as pernas, às vezes duas
fazendo-as quadrúpedes, às vezes quatro tornando-as bípedes. A
estas todas eu libertava para analisar seu comportamento e estudar o
quanto viviam sem asas, andando pelo chão. Mas logo me enjoava e
matava-as com uma chinelada.
Um dia capturei uma dezena de moscas e projetei um inusitado avião.
Com um palito de picolé fiz o corpo da aeronave e com o outro
atravessado em cruz sobre aquele montei as asas. Sobre estas colei as
moscas, cinco de cada lado. Eu calculava que era o número suficiente
para fazer o avião decolar. Tendo-as fixado liberei o avião, que eu
prendera à mesa com fita adesiva. As moscas bateram as asas e o
brinquedo subiu desajeitado, pendendo ora para um ora para outro
lado. Diverti-me com o descompasso e em seguida frustrei-me com a
falta que a persistência fazia às moscas, que em seguida
arrefeceram e fizeram o avião estatelar-se no chão. Algumas ainda
tentaram voar mas logo todas se puseram prostradas. Repreendi-as com
severidade e puni-as esmagando-as sob meu pé, partindo o avião em
pedaços.
Depois das moscas ofereceram-me o pinto. Matei-o sem convicção, e à
noite ponderei que eu podia tê-lo salvo se me oferecesse para
alimentá-lo, retirando-o do convívio com os outros pintos, os quais
sem dúvida o matariam ou o levariam à morte por não lhe permitir
chegar à comida nem à água. Foi muito diverso o que senti ao ver o
primeiro cão atropelado que matei.
Minha casa ficava em uma baixada, numa esquina com fluxo intenso de
veículos e habitada por muitos cães vadios, abandonados em uma mata
próxima e que, famintos, vasculhavam as lixeiras da região. Nos
finais de semana os carros passavam mais depressa do que o habitual,
conduzidos por motoristas em geral abastecidos por cervejas. Dessa
combinação resultavam constantes atropelamentos. Dos cães.
Era sábado à noite e ouvi um estrondo. Abri a porta e vi algo
peludo estirado no meio da rua. Hesitei mas saí para ver o que era.
Aproximei-me e vi um cãozinho vira-latas deitado de lado somente com
três patas. Olhei em volta e vi que a quarta fora de fato arrancada
e rolara até a calçada. O bichinho estava contudo vivo, calado,
procurando-me com os olhos. Sua respiração estava rápida mas ele
não ofegava, via-se apenas sua barriga inflar enchendo-se de ar e
esvaziando-se bruscamente.
Muitos cães eram atropelados e saíam gritando e correndo. Estes
curavam-se sozinhos e logo se os via saltitando pelas ruas, revirando
latas e roendo lixo. Aqueles que ficavam parados em silêncio no
asfalto, contudo, não tinham outro jeito senão serem mortos.
Andei de volta para casa e peguei a enxada. Caminhei até o cãozinho,
arremessei a ferramenta até o terreno baldio do outro lado da rua e
voltei para conduzir o animal até o local de seu sacrifício.
Retirei-o do meio da rua para que eu próprio não sofresse destino
semelhante ao seu. Quando peguei-o, embora tenha-o feito
cuidadosamente, ele gritou um ai ai ai carregado de dor. Controlou-se
porém e engoliu o sofrimento, aceitando-se ser carregado até o
outro lado da rua.
Posicionei-lhe numa pequena elevação do terreno, pus sua cabeça
recostada em um montículo de grama e acariciei-lhe suavemente entre
as orelhas. Peguei a enxada e golpeei sua cabeça com uma pancada
desferida velozmente e com toda a força que eu era capaz de alcançar
aos dez anos. Fi-lo de modo preciso, acertando-lhe bem entre os
olhos. Seu crânio partiu-se, como pude avaliar pelo barulho, mas sua
pele não rasgou, de modo que ele não sangrou mais do que sangrara
com a perda da perna.
Nunca entendi como uma pessoa pode fazer algo tão brutal quanto
abandonar seu cãozinho de estimação. Os donos chegavam de carro
com o bicho num saco escuro, abriam a porta do veículo e atiravam o
bicho para fora, com saco e tudo. O cachorro esforçava-se para
libertar-se e, quando o fazia, sentava-se num ponto da calçada e
punha-se a esperar. Sem dúvida pensava que não poderia sair dali,
sob pena de o dono não o encontrar quando voltasse para buscá-lo,
uma vez que nenhum cão pode acreditar ter sido abandonado.
Certamente eles pensam que o dono distraiu-se e deixou que o saco
onde o carregava caísse do veículo. Ou pensam que se trata de uma
brincadeira. Alguns imaginam que a brincadeira seja encontrar o dono
ou o caminho de volta para casa e se põem a farejar e correr atrás
da pista.
Era muito triste ver os outros, aqueles que ficavam parados, olhando
com olhos tristes em redor, paralisados pela estranheza e postos em
movimento somente quando a fome lhes impunha partir em busca de
comida. Eu os via definhar nas primeiras semanas, emagrecendo e
baixando a cabeça, arrastando as orelhas pelo chão. Até que,
talvez por serem cães, davam a volta por cima e se punham altivos,
formavam grupos, desbravavam novos lugares atrás de lixeiras a latir
para outros cães.
Eu tinha nesta época um cãozinho de porte médio chamado Pateta. O
nome indicava sua condição intelectual desfavorecida e seu
atabalhoamento. Ele não aprendia nada do que eu lhe ensinava e ainda
se mostrava desengonçado. Por isso eu o mantinha atado e só saía
para passear com ele preso à guia. Porém um dia ele soltou-se e foi
atropelado.
Seus ferimentos no entanto não foram graves e eu e minha mãe
esforçamo-nos para curar-lhe as feridas. Não houve fraturas nem
amputações. Com pomadas e um spray roxo barato deixamo-lo novo em
três semanas. Mas o atropelamento seguinte era questão de tempo.
Reforcei sua corrente e coleira e evitei-o por mais de um ano, tempo
ao cabo do qual um automóvel partiu-lhe a espinha.
Recolhi meu cãozinho do asfalto onde ele choramingava baixinho.
Pu-lo sobre um cobertor e acariciei-lhe enquanto se acalmava. Esperei
que ele serenasse e avaliei a gravidade de sua lesão. Minha mãe
disse entre lágrimas que ele tinha a coluna fraturada. Eu respondi
que aguardaria até o dia seguinte para confirmar se não era
impressão apenas e se não havia a possibilidade de o meu
cachorrinho viver.
Era uma época em que os veterinários não eram encontrados em cada
esquina, e mesmo que os houvesse aos milhões a pobreza de minha mãe
não nos permitiria pagar a consulta nem o tratamento. Todos se
relacionavam com os animais segundo a cultura da interrupção do
sofrimento por meio do sacrifício.
Foi a isso que tive de me render no dia seguinte, arrependido de
tê-lo deixado sofrendo a noite toda. Pateta continuava deitado na
mesma posição e me olhava com seus olhos úmidos, suplicantes.
Aqueles mesmos olhos das vítimas anteriores, redondos, brilhando
envoltos numa película de tristeza, implorando ajuda em silêncio. A
maldição não são os gritos ou uivos da pancada, o terrível mesmo
é o olhar que nos dirigem aqueles que reconhecem sua condição
irremediável e suplicam que se lhes abrevie o sofrimento.
Precisei bater três vezes na cabeça do Pateta para certificar-me de
que o matara e que não lhe impusera um sofrimento ainda maior.
Enterrei-o mais profundamente que os outros cães que eu matara,
talvez para sepultar junto com ele o meu sofrimento por sua perda.
Quando voltei para casa, juntei minhas lágrimas às de minha mãe e
abracei-a ainda sujo de terra, soluçando como a criança que eu era.
Pedi-lhe que nunca mais tivéssemos um cachorro porque nunca mais eu
queria matar nenhum bicho.
Mas meses depois um outro vira-latas já morava na casinha que fora
do meu querido e fiel amigo. Era preto como o outro e com a pelagem
lisa e brilhante. Ao contrário daquele, porém, o Sheidi era esperto
e coordenava muito bem seus movimentos. A primeira coisa que lhe
ensinei foi que não podia ir na rua sem mim.
Amarrava-o cuidadosamente, mas não podia contar com o azar de, se
ele se soltasse, ter o mesmo destino do Pateta. Sheidi aprendeu tão
bem que a primeira coisa que fez ao soltar-se pela primeira vez foi
arranhar a porta de casa e latir me chamando para brincar. Mimei-o
muito parabenizando-o, enchendo-lhe a boca de guloseimas caninas,
restos de carne e ossos do almoço.
Sheidi viveu seis anos. Neste meio tempo, tive de matar um cão
grande, o maior que já sacrifiquei. Era um vira-latas marrom de uns
trinta quilos, cabeça grande e sem rabo. Parecia até de raça, mas
não devia ser por estar perdido num domingo à noite.
Escutei o barulho do atropelamento e, pelo volume, imaginei que
pudesse ter sido uma pessoa. Enganei-me, porém. Sentado na calçada
diante da minha casa o cachorro olhava na minha direção. Estranhei.
Permaneci fitando-o por alguns instantes e reconheci nos seus olhos o
que sua atitude contrariava. Desci as escadas e dirigi-me até ele.
Parei diante do bicho e ele permaneceu imóvel, olhando-me com
aqueles malditos olhos suplicantes, redondamente úmidos por aquela
comovente tristeza.
Abaixei-me para vê-lo mais de perto, e foi então que percebi que
suas patas traseiras estavam posicionadas de um modo estranho. O
motivo, como pude concluir depois de dar a volta, era uma torção em
sua coluna. O cachorro fora partido ao meio e sua espinha girara
noventa graus. Olhei para sua cabeça e avaliei que minha enxada era
muito leve para matá-lo.
Um dos vizinhos saiu de casa e veio ver o que se passava.
Expliquei-lhe a situação e perguntei se ele não poderia ajudar-me
a matar o animal. Ele respondeu-me deixa que ele morre sozinho, do
jeito que está amanhecerá morto. Eu respondi-lhe que não deixaria
o cão sofrer a noite inteira e que daria um jeito na situação sem
a ajuda dele. Ele deu as costas e voltou para sua televisão.
Fui até o outro vizinho e bati na porta de sua casa. Perguntei você
não tem aí um machado para me emprestar, um cachorro grande foi
atropelado e eu preciso de uma coisa pesada para sacrificá-lo.
Tenho, tenho sim, respondeu ele indo apressadamente buscar a
ferramenta. Toma, pega, eu vou junto contigo.
Era um homem de uns quarenta anos, com mulher e duas filhas.
Acompanhou-me até perto do cão, o qual arrastou-se dois passos em
nossa direção. É, não tem jeito, tem que matar, mas ele é
grande, disse ele. Você não quer fazer isso, perguntei. Não, eu
não, se tu não consegue vamos deixar ele aí que até amanhã ele
vai ter morrido. Não, não vou deixá-lo aqui sofrendo.
Caminhei até o outro lado da rua e acompanhei a penosa travessia do
cão, que se arrastou até mim com a força que lhe restava nas patas
dianteiras. Empunhei firmemente o machado e levantei-o. O cão
manteve o olhar fixo em meus olhos, com o mesmo ar suplicante.
Suspendi o gesto e ele fechou os olhos, dando-me coragem para
concluir o movimento.
Desferi o golpe com a parte de trás do machado e esmaguei-lhe o
crânio. O bicho esticou-se no chão mas não morreu. Suas patas
dianteiras retesaram-se e ele convulsionou. Bati-lhe novamente, agora
na lateral da cabeça. Os espasmos continuaram e eu repeti o golpe
uma, duas, três vezes, até me lembrar que talvez ele já estivesse
morto e os movimentos eram apenas ácido lático eletrizado.
Abaixei-me e pus a mão em seu peito, suavemente, procurando
sentir-lhe os batimentos do coração. Só percebi os músculos
relaxando pouco a pouco até cessarem de todo seu movimento.
Meu vizinho aproximou-se e perguntou-me o que eu faria com o corpo do
cachorro. Respondi-lhe que eu teria de cavar um buraco para
enterrá-lo. Ele objetou que era um animal muito grande. Disse-lhe
que não havia outra escolha, pois eu não iria deixá-lo apodrecendo
a céu aberto.
Meu vizinho foi até sua casa e trouxe-nos um enxadão e uma pá.
Cavamos um buraco bem profundo, depositamos o cachorro nele e
fechamo-lo novamente. Agradeci a ajuda do vizinho e ele olhou-me bem
nos olhos antes de dizer disponha, passe bem a noite, garoto.
Quando entrei em casa dirigi-me ao banheiro e, ao olhar-me no
espelho, vi que teria de tomar um demorado banho para limpar todo o
sangue que respingara em mim. Provavelmente enquanto eu erguia o
machado para golpear novamente o cão, o sangue da própria
ferramenta gotejou-me sobre a cabeça, e pequenas gotículas
vermelhas pintavam o meu rosto e minhas roupas continham dezenas de
pequenas manchas.
Durante o banho tentei limpar-me do sangue, da terra e sobretudo da
imagem daqueles olhos que eu sabia serem capazes de enxergar no fundo
de mim. Os olhos suplicantes úmidos da tristeza que implora pela
morte para salvar-se de um sofrimento insuportável.
O fantasma daquele cão acompanhou-me por anos. Até o dia em que um
carro atropelou o Sheidi.
Foi num sábado pela manhã. Eu ainda estava deitado quando ouvi um
carro descendo o morro em alta velocidade e o estouro de um corpo que
se partia sob suas rodas. Levantei-me com o coração saltando-me do
peito e olhei pela janela para confirmar a sensação que me
trespassava a alma: do outro lado da rua, encostado no meio-fio,
estava o corpo do Sheidi deitado, próximo à cadelinha no cio que o
fizera descumprir minhas ordens.
Antes mesmo de sair porta a fora eu já me engasgava com meu pranto.
Corri desesperadamente ainda pensando que se eu fosse depressa
poderia salvá-lo, custasse quanto custasse levá-lo ao veterinário.
Uma enorme mancha de sangue que voara de sua boca, grosso como eu
nunca vira, freou-me os passos. Meu cachorrinho como que tossia
sufocado e em desespero, expelindo uma baba vermelha. O carro passara
com as rodas sobre sua barriga e esmagara-o.
Voltei correndo para casa e minha mãe perguntou-me chorando é o
Sheidi? Respondi sim, é ele, já com a enxada na mão. Corri até
ele, peguei-o nos braços e levei-o até o terreno baldio. Coloquei-o
no chão e despedi-me dizendo adeus, meu amigo querido. Levantei
rapidamente a enxada porque eu já me repreendia por estar fazendo-o
esperar tanto pelo alívio de seu sofrimento. Acertei-lhe na cabeça
e então aconteceu o que de pior já me aconteceu nesta vida: ele,
que até então estivera com os olhos fechados, contorceu-se, virou o
corpo, ergueu a cabeça e arregalou os olhos mui redondos para mim,
cheios de angústia e medo. Eu solucei e reuni minhas forças para
desferir-lhe um golpe ainda mais duro, disse numa voz aflita,
sufocando-me, morre, Sheidi, por favor, morre, e outro, e outro, até
enfim o derradeiro golpe entregá-lo à morte.
Parei extenuado, os braços caídos, a enxada largada no chão. Minha
mãe assistiu a tudo da sacada, as mãos entrelaçadas lavadas em
pranto.
Recompus-me com dificuldade, cavei um buraco e pu-lo lá dentro.
Instalei a mangueira na torneira externa e lavei o sangue da rua.
Sei que fiz o que devia ser feito. Fiz-lhe a única coisa que podia
para eliminar a sua dor. Mesmo assim estou aqui hoje, Sheidi, meu
amigo querido, estou aqui hoje pedindo-lhe, pedindo perdão.
Primeira vez
Quando comprei meu carro tive a
ingênua esperança de que, como em um passe de mágica, eu ficaria
mais bonito. Acho que acontece com todo mundo, ou pelo menos com
muita gente. O automóvel é um fetiche, e o homem que sai da
concessionária dirigindo o seu, nunca tendo dirigido outro que não
o da autoescola, tem que necessariamente sentir-se envaidecido, sob
pena de não parecer humano.
Enganei-me, porém. É verdade
que muitas pessoas vieram falar comigo, dizer ai que carro lindo,
recomendar posto de combustível e tipo de gasolina, indicar local de
lavagem etc. Mas o foco da questão era sempre o carro, não era eu.
A ponto de as pessoas olharem apenas para o carro, inclinarem-se em
reverência olhando de baixo pra cima e pondo-se na ponta dos pés
para olhar por cima. As mãos ao lado do rosto e os olhos apertados
para ver através dos vidros como era o interior. Eu abria a porta e
esperava que as mulheres entrassem, sentassem e me convidassem para
levá-las pela cidade numa voltinha.
Mas isso não aconteceu.
Os caras, ao contrário, até
pediam para dirigir. Eu fazia que não tinha ouvido e dizia senta aí
do lado do carona pra gente dar uma volta no Centro. Eles gabavam o
interior e reclamavam que eu não acelerava. Acelera aí, dá umas
arrancadas pra gente sentir o motor. Eu sorria e ignorava a tolice.
O
cheiro do carro era muito agradável. O interior novinho exalava um
odor realmente inebriante. Sei que andei por semanas com o nariz
arrebitado ao volante, como se o assento do carro me impusesse um ar
superior. A gasolina explodindo no motor inflava o meu ego e me punha
alienado de mim mesmo, hipnotizado pelo poder metálico do automóvel.
Quando finalmente entendi que
andar pelo Centro da cidade não faria cair uma mulher no meu colo
nem no banco do carona, resolvi aderir à ideia de lançar-me a uma
danceteria. Pensei em convidar algum amigo, mas desisti logo, pois
como eu faria com a garota? Não. Era melhor ir sozinho para poder
ficar mais à vontade com a gostosa que eu pegaria e levaria para o
motel. Sim, porque eu não pensava em comê-la no banco do carro. Não
era assim que eu pensara perder meu cabaço.
Eu não tinha mais nenhum sonho
romântico de encontrar a mulher da minha vida, nem mesmo pensava em
fazer amor com uma moça bonita e delicada com quem eu namoraria
meses antes de nos deitarmos na cama dela, perfumada e macia, para
uma noite de encantos e carinhos. Uma foda me satisfaria, e, contanto
que não fosse com uma baranga horrível, uma mulher era o que
bastava.
Fui para Lajeado no local onde,
segundo informações, era fácil pegar mulher. Me disseram inclusive
que lá as mulheres é que te pegavam. A ressalva era que não se
tratava de meninas de dezessete aninhos, mas mulheres com mais de
trinta e cinco. Melhor ainda, pensei, pois as ninfetas nunca me
atraíram, sobretudo porque o que eu queria era mulher experiente,
que não esperasse de mim nenhum enlevo e afeto que eu não estivesse
disposto a oferecer.
O
salão era amplo, com dois ambientes: um para dançar e ficar em
volta conversando e bebendo, e um mais reservado, com mesinhas onde
aqueles que quisessem descansar de ficar de pé e trovar sentados
podiam satisfazer-se.
Havia muita gente. Estava lotado.
Uma confusão de corpos, braços e pernas girando ao ritmo da banda.
Não era música eletrônica, portanto o homem ou a mulher tinham que
tirar a companhia para dançar e fazê-lo conforme era praxe nos
tempos de antanho: braço esticado, o outro nas costas da mulher e
ela no ombro dele, os corpos um diante do outro, umbigos bem
próximos.
Comprei uma lata de cerveja,
pu-la no copo e escondi-me atrás dele. Andei pelo salão desviando a
custo dos outros. Dei uma volta completa, fitando com mais atenção
algumas mulheres, fosse para olhá-las nos olhos, fosse para encarar
suas bundas gostosas e peitos querendo estourar sob os decotes. Cada
boazuda que, na segunda volta que eu dava, parei a um canto
constrangido do volume que me crescia dentro das calças.
A chave do meu carro balançava
no meu cinto, acintosamente pendurada. Eu, sem perceber, punha a mão
na chave como se acariciasse minhas bolas, alisando-a com delicadeza
e intenção, encarando ora uma loira ora uma morena. No entanto, a
estratégia não me rendeu nenhum fruto, e aquela história de que
ali as mulheres é que pegavam os homens não se confirmou. Pelo
menos não para mim.
Flagrei alguns beijos gulosos
entre casais que se apertavam cheios de ansiedade e desejo, e tive
inveja deles.
Perambulei pelo salão e
sentei-me no segundo ambiente, sozinho, com um resto de cerveja no
copo de plástico. Embasbaquei-me por alguns minutos, olhando o
movimento, vendo diante de mim pessoas cujas formas se misturavam, de
variadas cores, todas elas envoltas num único cheiro de cigarro,
suor e álcool.
Bebi o último gole de cerveja,
quente. O sabor horrível concentrou-se na minha boca, fechei os
olhos, fiz uma careta e engoli. O líquido caiu-me no estômago como
um soco. Não contive um ah irritado. Súbito, levantei e pus-me a
caminho da saída.
Andar pelo salão da danceteria
fora tão produtivo quanto trafegar pelo Centro da cidade, com a
diferença de que o êxito alheio daqueles que enfiavam suas línguas
boca adentro das mulheres de trinta e cinco anos presentes na festa
me enlouquecia. Alguns daqueles filhos da puta provariam os beijos de
cinco, seis, até dez ou vinte daquelas mulheres, esfregariam seus
corpos nelas e meteriam as mãos em suas bundas e peitos. No final da
festa, comeriam a mais gostosa entre elas, apertariam suas carnes e
enfiariam por entre suas pernas um pau latejante e sôfrego, vaidosos
por ter se esfregado em várias outras sem contudo tê-las penetrado,
pulsando de tesão mais por si mesmos do que por elas.
Antes de ir para casa dei uma
volta pelo Centro. Passei por duas prostitutas feias e uma dúzia de
travestis, mais bem arrumados e parecendo mais mulheres do que elas.
Endireitei o volante depois de uma curva e tomei o rumo de casa.
Estacionei na garagem, entrei em
casa e fui ao banheiro. Mijei uma urina espessa, amarela e espumosa
como a cerveja que eu tomara. Sacudi meu pênis, murcho e
decepcionado.
Mas ao deitar-me na cama,
lembrei-me das mulheres da festa, dos beijos que flagrei, aquelas
peles lisas rebrilhando regos entre peitos redondos e macios. Meu pau
enrijeceu, logo ficou duro e pulsou dentro da cueca. Peguei-o,
apertei-o em minha mão, livrei-me da roupa e puxei o prepúcio,
iniciando um movimento agressivo de masturbação.
Bati uma punheta angustiada, os
olhos fechados no escuro do quarto, com as imagens daquelas mulheres
pipocando em minha cabeça. Gozei depressa e sem prazer. Detive o
esperma com a mão em concha e logo a porra escorrendo entre meus
dedos enojou-me. Levantei cuidando para não lambuzar o lençol e o
cobertor. Limpei-me com minha própria cueca, fui ao banheiro lavar
as mãos e joguei a roupa suja dentro da máquina de lavar.
Demorei para dormir. Acho que se
passaram horas. Quando finalmente senti que o sono me abocava e
envolvia, veio o sol, iluminou o dia e me despertou.
Fora a primeira das três
tentativas que fiz de ficar com alguém em uma festa em danceteria. O
primeiro dos três fracassos.
Andei por outros lugares:
balneários, lagoas, praças, bares, lancherias, lojas, shoppings.
Sempre com a chave à mostra mas incapaz de aproximar-me de alguém
e entabular qualquer conversa. Fazia-o com minhas antigas amigas e
colegas de trabalho ou de escola, mas estas pareciam incapazes de me
enxergar ou perceber minhas insinuações. Eu me fiava na ideia de
que alguém abriria espaço para mim com um sorriso, um gesto, ou
mesmo viesse até mim, poupando-me deste trabalho.
Enganei-me.
Um
dia visitou-me um ex-colega de trabalho. Ele era mais tímido e feio
do que eu: ruim de matemática, nenhuma habilidade com as palavras,
tanto na fala quanto na escrita, um nariz aquilino com um calombo no
tabique, olhos claros mas inexpressivos, cabelos ralos e profundas
entradas de careca precoce. E, para completar, meio vesgo, mais
precisamente estrábico do olho esquerdo.
Sentou-se na cadeira que lhe
estendi, eu animado com a visita dele, ele com um ar suspeito, um
sorrisinho malicioso nos lábios. Eu olhei de lado, inclinando a
cabeça e sorri perguntando o que é que tu andou aprontando.
Ele respondeu tá tão na cara
assim, com voz baixa, sempre falando mais para si do que para os
outros. Eu insisti fala logo, não vem me enrolar que esse teu ar de
sem-vergonha não me engana. Estive em Porto Alegre terça passada,
ele iniciou. Tu já ouviu falar do site vip luxúria, perguntou. Eu
respondi que não e ele me explicou que era uma página com dezenas
de acompanhantes, jeito chique de dizer dezenas de putas, as quais
podiam ser escolhidas pelo cliente que, mediante ligação, agendava
um programa. Ele retirou o notebook da pasta que trouxera, abriu-o e
conectou-o à internet.
Eu acompanhei sua narrativa meio
boquiaberto, com um sorriso desconfortável nos lábios. Quando a
página abriu, ele virou a tela para mim e disse esse é o site. Aqui
você clica para ver as mulheres, aparece a foto e, se você clicar
em uma delas, abrem outras fotos e o perfil delas, incluindo medidas
e o que elas fazem, se topam sexo oral, anal, orgias etc. Eu escolhi
uma morena, o nome dela era Éllen, tinha uns peitões e uma bunda
bem gostosa. E o que vocês fizeram, eu perguntei com o sangue
fervilhando e o pau crescendo. A gente foi num motel, ela foi super
atenciosa, bem querida, tirou a minha roupa e me fez um boquete.
Depois tirou a roupa, deitou na cama e se virou, ficou de quatro,
empinou bem a bunda e disse vem, me fode gostoso. Eu comi ela de tudo
quanto foi jeito, mas acho que tive um problema e não gozei. Ela
insistiu, me chupou, até me deu o cuzinho, dizendo que abriria uma
exceção para mim, que ela não costumava fazer isso sem cobrar um
extra. Mas não adiantou. Ela pareceu meio frustrada, mas quando
terminou a hora vestiu-se, pegou o dinheiro e me pediu para levá-la
de volta.
E quanto custou, perguntei. Só
ela custou duzentos, mais o motel, o táxi e o ônibus. Dá uma
olhada, e clicou sobre a foto da Éllen. As outras fotos apareceram,
ela nuinha e em poses sensuais. Era bem gostosa mesmo. Valia cada
centavo. Fixei o olhar na bunda dela e pensei não acredito que esse
bosta enfiou o pau aí dentro e não gozou.
Conversamos por mais uma hora e
eu fiquei com o computador clicando nas fotos das outras, pensando
qual delas seria minha. Ao final levei-o para casa no meu carro e ele
disse que valia a pena. Estava só esperando juntar um dinheiro para
ir de novo, com outra, experimentar uma loira que ele até já
escolhera.
Eu não falei nada, nem que ia
fazer o mesmo nem que não. À noite, sentado assistindo TV, eu não
conseguia me concentrar em nada além do fato de que ele, ao
contrário de mim, já não era mais virgem. Não conseguia tirar da
cabeça a imagem dele pelado enfiando-se dentro daquela morena,
penetrando sua buceta depois da boca úmida dela ter chupado seu pau,
e por último ela dizendo mete no meu cuzinho que eu vou abrir uma
exceção pra ti porque eu quero te sentir gozar dentro da minha
bunda. Ai, meu deus, isso não era justo.
Levantei-me de súbito, peguei a
chave do carro e fui para o Centro, determinado a achar uma
prostituta e perder a porra desse cabaço que estava me deixando
louco.
As
voltas que dei foram muitas. Fiquei andando em círculos, contornando
quadras com o coração disparado, a cabeça doendo, os pensamentos
trespassando-me como facas afiadas, piscando em flashes desconexos.
Eu estava nervoso, sentia as mãos excessivamente firmes apertando o
volante, os braços meio trêmulos, eu inteiro agarrado naquela
ideia, subitamente ensandecido, obcecado.
Meus olhos iam e vinham
conferindo os retrovisores, temeroso de que algum conhecido estivesse
na minha retaguarda e percebesse o que eu estava querendo.
Os travestis acenavam, gritavam e
balançavam as tetas de silicone expostas como troféus. Eles não me
interessavam, ainda que tivessem uma aparência melhor que a das
putas. Passei por três delas. Duas morenas e uma loira, pela qual me
interessei. Desacelerei o carro e passei perto dela olhando-a
fixamente, de cima a baixo, mas concentrando-me no rosto, cujo
aspecto seria conclusivo. Ela empinou a bunda e fez cara de safada,
sensualizando com a língua espichada lambendo os lábios.
Não parei. Virei à direita e na
próxima esquina novamente à direita, e de novo à direita. Passei
por ela três vezes antes de parar. Conferi os espelhos para
certificar-me de que nenhum outro carro se aproximava. Eram onze e
meia da noite.
Abri o vidro do lado do carona e
ela imediatamente se encurvou metendo a cara para dentro numa pose
que arreganhava o decote, o qual, no entanto, revelava peitos
nanicos, só uns bicos metidos sobre um caroço de gordura.
Oi, gato, tá a fim dum programa
gostoso. Queque cê faz, eu perguntei. Tudo, só não faço anal.
Era uma restrição inoportuna,
mas eu não queria comer a bunda flácida dela. Se fosse um cu o meu
desejo, valeria a pena pagar por um traveco de bundinha dura, e não
aquela puta sem massa muscular nem carne nas ancas. Mas o que eu
queria era uma mulher, uma buceta para enfiar meu pau enterrando-o
até as bolas numa carne úmida.
E quanto é, questionei.
Cinquenta, ela disse. E onde a gente pode ir. Ela me respondeu
indicando um local que eu não conhecia e, pelo nome, não era nada
confiável. Perguntei se tudo bem se fôssemos no Cascata. Ela disse
que tudo bem. Destravei a porta e deixei-a entrar.
Ela sentou-se de lado, olhando
para mim. Passou a mão na minha coxa e eu disse não, que esperasse
chegarmos ao motel. Ela disse tudo bem com uma voz contrariada e
endireitou-se no banco. Ainda tentou entabular uma conversa, mas eu
não lhe dei atenção. Sentia-me muito ansioso. Meu nervosismo
bloqueava meus pensamentos e minha voz saía entrecortada. Eu estava
eletrizado. Só conseguia pensar que me livraria de um peso, um
fardo, uma cruz, e tentava tranquilizar-me pensando que logo tudo
ficaria bem.
Subi a pequena rampa que dava
acesso ao motel, parei o carro e pedi um quarto. O recepcionista
disse número dezoito e eu pensei que seria a entrada para minha
maioridade. Estacionei, olhei a puta ao meu lado e disse vamos.
Fiz a gentileza de deixá-la
subir na frente. O quarto ficava no segundo andar, sobre a garagem.
Aproveitei para olhar por baixo de sua sainha e espiar sua bunda,
dividida por uma calcinha vermelha atochada entre as nádegas.
O quarto tinha uma cama de casal,
alguns espelhos e foi só o que eu vi. A roupa de cama era branca, o
que me alegrou por parecer higiênico.
Ela perguntou você não vai
tirar a roupa. Eu disse não, quero que você tire primeiro. Fi-lo
porque me dei conta que eu estava nervoso e mole. Mesmo imaginando-a
nua dali a instantes rebolando enquanto eu a penetraria, não me
excitei.
Ela se despiu de maneira sensual,
fazendo um strip diante de mim, ajoelhada na cama. Eu permaneci de
pé. Ajeitei meu pênis enfiando a mão dentro das calças. Ela
aproximou-se, desceu da cama, ajoelhou, baixou minha calça até o
tornozelo e lambeu minha pica, umedecendo-a com a saliva e apalpando
minhas bolas. Abocanhou-a inteira enchendo a boca. Senti que o sangue
afluía endurecendo meu pau. Alcancei a camisinha e disse coloca pra
mim. Ela abriu a embalagem, pôs a ponta na boca, entre os lábios, e
colocou o preservativo no meu pênis semiendurecido.
Ela serpenteou para cima da cama
e pôs-se de quatro na beirada do colchão. A seguir, abaixou a
cabeça e empinou a bunda meio flácida, os peitos uma tábua com
dois bicos mordidos roçando o lençol, o rego escuro entre as
nádegas em cujo meio o cu se apertava fechadinho e eu, pegando-a
pela cintura, dando três bombeadas antes de ejacular e encher de
porra a camisinha, sem nem ao menos ter completado a ereção, o pau
mais mole do que duro.
Tirei-me de dentro dela, despi a
camisinha com pressa de levantar as calças e livrar-me da sensação
de ridículo que se apoderara de mim. Andei até o banheiro e num
acesso de limpeza enrolei metodicamente o preservativo no papel
higiênico e lancei-o no lixo. Lavei as mãos esfregando-as com
força. A prostituta veio até perto de mim, ainda nua, molhou a mão,
ensaboou-a e esfregou a buceta. Depois secou-se e voltou para perto
da cama, onde catou suas roupas e vestiu-se.
Ela ainda abriu o frigobar e
disse vou pegar uma cerveja, você não vai me negar uma cerveja,
vai? Eu disse tudo bem, pode pegar, mas agora vamos embora. Eu te
deixo onde? Na esquina onde eu tava, ela respondeu com um tom de voz
levemente irritado com a pergunta óbvia que eu fizera. Acrescentou
que o pagamento devia ser feito ali, eu cobro antes de a gente ir
embora. Abri a carteira e tirei os cinquenta reais que combináramos.
Paguei a conta do motel, outros
cinquenta, e andei o mais depressa que pude. Ela disse ui, tá com
pressa, e eu não respondi, o olhar vidrado na estrada diante de mim.
Olhei em todos os retrovisores e me tranquilizei porque não havia
ninguém atrás de nós. Parei o carro, ela disse adeusinho então,
até a próxima.
Acelerei
e voltei pra casa no mesmo estado catatônico em que saíra. Entrei
no banheiro, pelei-me, ensaquei as roupas e decidi atirá-las para
fora de casa assim que eu terminasse aquele banho longo e quente,
demorado e reconfortante que o ruído do chuveiro indicava ter apenas
começado.
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