Matar um cão nem sempre é uma tarefa fácil. Há várias
circunstâncias que colaboram ou prejudicam o sacrifício do animal:
tamanho do bixo, idade, peso, vitalidade, tamanho da enxada com a
qual se bate em sua cabeça, horário da execução, força e
precisão do golpe. É no entanto o dono do cachorro o fator
determinante: quando o dono é desconhecido, em geral basta uma
pancada; quando o dono é quem executa, a coisa se complica.
A primeira vez que tive consciência do sofrimento de um animal foi
na infância, contava eu nove anos. Meu tio criava galinha e
trouxe-me um pinto na palma da mão. Disse-me que era um pobre
animalzinho aleijado e pediu-me que eu abreviasse seu sofrimento,
pois ele não conseguiria sobreviver entre os pintos normais. Falou
que tinha pena do bichinho e que não tinha coragem de matá-lo.
Alcançou-mo e disse mata-o como achar melhor.
Eu o apanhei de sua mão com todo o cuidado. Analisei suas patas
fraturadas e detive-me em seus olhos que me fitavam de um modo
bastante singular, como nunca alguém me havia fitado antes. Sua
plumagem era macia, de um amarelo claro, e seu bico piava a
intervalos regulares um piu discreto e triste. Entendi que ele sofria
e que, conforme dissera meu tio, que se retirara, meu gesto seria
piedoso, um favor que eu faria àquela pequenina ave.
Ergui-o acima de minha cabeça, estiquei o braço e lancei-o contra o
solo o mais violentamente que pude. O pintinho estalou no chão e
morreu.
Antes disso eu judiara de moscas como todo menino normal.
Capturava-as com uma armadilha muito simples feita com um saco
plástico, água e açúcar, ou usava minhas próprias mãos em
concha para surpreendê-las pousadas sobre a mesa. Eu as mantinha em
saquinhos transparentes e experimentava diversas brincadeiras,
vulgarmente classificadas como torturas: de umas arrancava as asas,
de outras além das asas retirava as pernas, às vezes duas
fazendo-as quadrúpedes, às vezes quatro tornando-as bípedes. A
estas todas eu libertava para analisar seu comportamento e estudar o
quanto viviam sem asas, andando pelo chão. Mas logo me enjoava e
matava-as com uma chinelada.
Um dia capturei uma dezena de moscas e projetei um inusitado avião.
Com um palito de picolé fiz o corpo da aeronave e com o outro
atravessado em cruz sobre aquele montei as asas. Sobre estas colei as
moscas, cinco de cada lado. Eu calculava que era o número suficiente
para fazer o avião decolar. Tendo-as fixado liberei o avião, que eu
prendera à mesa com fita adesiva. As moscas bateram as asas e o
brinquedo subiu desajeitado, pendendo ora para um ora para outro
lado. Diverti-me com o descompasso e em seguida frustrei-me com a
falta que a persistência fazia às moscas, que em seguida
arrefeceram e fizeram o avião estatelar-se no chão. Algumas ainda
tentaram voar mas logo todas se puseram prostradas. Repreendi-as com
severidade e puni-as esmagando-as sob meu pé, partindo o avião em
pedaços.
Depois das moscas ofereceram-me o pinto. Matei-o sem convicção, e à
noite ponderei que eu podia tê-lo salvo se me oferecesse para
alimentá-lo, retirando-o do convívio com os outros pintos, os quais
sem dúvida o matariam ou o levariam à morte por não lhe permitir
chegar à comida nem à água. Foi muito diverso o que senti ao ver o
primeiro cão atropelado que matei.
Minha casa ficava em uma baixada, numa esquina com fluxo intenso de
veículos e habitada por muitos cães vadios, abandonados em uma mata
próxima e que, famintos, vasculhavam as lixeiras da região. Nos
finais de semana os carros passavam mais depressa do que o habitual,
conduzidos por motoristas em geral abastecidos por cervejas. Dessa
combinação resultavam constantes atropelamentos. Dos cães.
Era sábado à noite e ouvi um estrondo. Abri a porta e vi algo
peludo estirado no meio da rua. Hesitei mas saí para ver o que era.
Aproximei-me e vi um cãozinho vira-latas deitado de lado somente com
três patas. Olhei em volta e vi que a quarta fora de fato arrancada
e rolara até a calçada. O bichinho estava contudo vivo, calado,
procurando-me com os olhos. Sua respiração estava rápida mas ele
não ofegava, via-se apenas sua barriga inflar enchendo-se de ar e
esvaziando-se bruscamente.
Muitos cães eram atropelados e saíam gritando e correndo. Estes
curavam-se sozinhos e logo se os via saltitando pelas ruas, revirando
latas e roendo lixo. Aqueles que ficavam parados em silêncio no
asfalto, contudo, não tinham outro jeito senão serem mortos.
Andei de volta para casa e peguei a enxada. Caminhei até o cãozinho,
arremessei a ferramenta até o terreno baldio do outro lado da rua e
voltei para conduzir o animal até o local de seu sacrifício.
Retirei-o do meio da rua para que eu próprio não sofresse destino
semelhante ao seu. Quando peguei-o, embora tenha-o feito
cuidadosamente, ele gritou um ai ai ai carregado de dor. Controlou-se
porém e engoliu o sofrimento, aceitando-se ser carregado até o
outro lado da rua.
Posicionei-lhe numa pequena elevação do terreno, pus sua cabeça
recostada em um montículo de grama e acariciei-lhe suavemente entre
as orelhas. Peguei a enxada e golpeei sua cabeça com uma pancada
desferida velozmente e com toda a força que eu era capaz de alcançar
aos dez anos. Fi-lo de modo preciso, acertando-lhe bem entre os
olhos. Seu crânio partiu-se, como pude avaliar pelo barulho, mas sua
pele não rasgou, de modo que ele não sangrou mais do que sangrara
com a perda da perna.
Nunca entendi como uma pessoa pode fazer algo tão brutal quanto
abandonar seu cãozinho de estimação. Os donos chegavam de carro
com o bicho num saco escuro, abriam a porta do veículo e atiravam o
bicho para fora, com saco e tudo. O cachorro esforçava-se para
libertar-se e, quando o fazia, sentava-se num ponto da calçada e
punha-se a esperar. Sem dúvida pensava que não poderia sair dali,
sob pena de o dono não o encontrar quando voltasse para buscá-lo,
uma vez que nenhum cão pode acreditar ter sido abandonado.
Certamente eles pensam que o dono distraiu-se e deixou que o saco
onde o carregava caísse do veículo. Ou pensam que se trata de uma
brincadeira. Alguns imaginam que a brincadeira seja encontrar o dono
ou o caminho de volta para casa e se põem a farejar e correr atrás
da pista.
Era muito triste ver os outros, aqueles que ficavam parados, olhando
com olhos tristes em redor, paralisados pela estranheza e postos em
movimento somente quando a fome lhes impunha partir em busca de
comida. Eu os via definhar nas primeiras semanas, emagrecendo e
baixando a cabeça, arrastando as orelhas pelo chão. Até que,
talvez por serem cães, davam a volta por cima e se punham altivos,
formavam grupos, desbravavam novos lugares atrás de lixeiras a latir
para outros cães.
Eu tinha nesta época um cãozinho de porte médio chamado Pateta. O
nome indicava sua condição intelectual desfavorecida e seu
atabalhoamento. Ele não aprendia nada do que eu lhe ensinava e ainda
se mostrava desengonçado. Por isso eu o mantinha atado e só saía
para passear com ele preso à guia. Porém um dia ele soltou-se e foi
atropelado.
Seus ferimentos no entanto não foram graves e eu e minha mãe
esforçamo-nos para curar-lhe as feridas. Não houve fraturas nem
amputações. Com pomadas e um spray roxo barato deixamo-lo novo em
três semanas. Mas o atropelamento seguinte era questão de tempo.
Reforcei sua corrente e coleira e evitei-o por mais de um ano, tempo
ao cabo do qual um automóvel partiu-lhe a espinha.
Recolhi meu cãozinho do asfalto onde ele choramingava baixinho.
Pu-lo sobre um cobertor e acariciei-lhe enquanto se acalmava. Esperei
que ele serenasse e avaliei a gravidade de sua lesão. Minha mãe
disse entre lágrimas que ele tinha a coluna fraturada. Eu respondi
que aguardaria até o dia seguinte para confirmar se não era
impressão apenas e se não havia a possibilidade de o meu
cachorrinho viver.
Era uma época em que os veterinários não eram encontrados em cada
esquina, e mesmo que os houvesse aos milhões a pobreza de minha mãe
não nos permitiria pagar a consulta nem o tratamento. Todos se
relacionavam com os animais segundo a cultura da interrupção do
sofrimento por meio do sacrifício.
Foi a isso que tive de me render no dia seguinte, arrependido de
tê-lo deixado sofrendo a noite toda. Pateta continuava deitado na
mesma posição e me olhava com seus olhos úmidos, suplicantes.
Aqueles mesmos olhos das vítimas anteriores, redondos, brilhando
envoltos numa película de tristeza, implorando ajuda em silêncio. A
maldição não são os gritos ou uivos da pancada, o terrível mesmo
é o olhar que nos dirigem aqueles que reconhecem sua condição
irremediável e suplicam que se lhes abrevie o sofrimento.
Precisei bater três vezes na cabeça do Pateta para certificar-me de
que o matara e que não lhe impusera um sofrimento ainda maior.
Enterrei-o mais profundamente que os outros cães que eu matara,
talvez para sepultar junto com ele o meu sofrimento por sua perda.
Quando voltei para casa, juntei minhas lágrimas às de minha mãe e
abracei-a ainda sujo de terra, soluçando como a criança que eu era.
Pedi-lhe que nunca mais tivéssemos um cachorro porque nunca mais eu
queria matar nenhum bicho.
Mas meses depois um outro vira-latas já morava na casinha que fora
do meu querido e fiel amigo. Era preto como o outro e com a pelagem
lisa e brilhante. Ao contrário daquele, porém, o Sheidi era esperto
e coordenava muito bem seus movimentos. A primeira coisa que lhe
ensinei foi que não podia ir na rua sem mim.
Amarrava-o cuidadosamente, mas não podia contar com o azar de, se
ele se soltasse, ter o mesmo destino do Pateta. Sheidi aprendeu tão
bem que a primeira coisa que fez ao soltar-se pela primeira vez foi
arranhar a porta de casa e latir me chamando para brincar. Mimei-o
muito parabenizando-o, enchendo-lhe a boca de guloseimas caninas,
restos de carne e ossos do almoço.
Sheidi viveu seis anos. Neste meio tempo, tive de matar um cão
grande, o maior que já sacrifiquei. Era um vira-latas marrom de uns
trinta quilos, cabeça grande e sem rabo. Parecia até de raça, mas
não devia ser por estar perdido num domingo à noite.
Escutei o barulho do atropelamento e, pelo volume, imaginei que
pudesse ter sido uma pessoa. Enganei-me, porém. Sentado na calçada
diante da minha casa o cachorro olhava na minha direção. Estranhei.
Permaneci fitando-o por alguns instantes e reconheci nos seus olhos o
que sua atitude contrariava. Desci as escadas e dirigi-me até ele.
Parei diante do bicho e ele permaneceu imóvel, olhando-me com
aqueles malditos olhos suplicantes, redondamente úmidos por aquela
comovente tristeza.
Abaixei-me para vê-lo mais de perto, e foi então que percebi que
suas patas traseiras estavam posicionadas de um modo estranho. O
motivo, como pude concluir depois de dar a volta, era uma torção em
sua coluna. O cachorro fora partido ao meio e sua espinha girara
noventa graus. Olhei para sua cabeça e avaliei que minha enxada era
muito leve para matá-lo.
Um dos vizinhos saiu de casa e veio ver o que se passava.
Expliquei-lhe a situação e perguntei se ele não poderia ajudar-me
a matar o animal. Ele respondeu-me deixa que ele morre sozinho, do
jeito que está amanhecerá morto. Eu respondi-lhe que não deixaria
o cão sofrer a noite inteira e que daria um jeito na situação sem
a ajuda dele. Ele deu as costas e voltou para sua televisão.
Fui até o outro vizinho e bati na porta de sua casa. Perguntei você
não tem aí um machado para me emprestar, um cachorro grande foi
atropelado e eu preciso de uma coisa pesada para sacrificá-lo.
Tenho, tenho sim, respondeu ele indo apressadamente buscar a
ferramenta. Toma, pega, eu vou junto contigo.
Era um homem de uns quarenta anos, com mulher e duas filhas.
Acompanhou-me até perto do cão, o qual arrastou-se dois passos em
nossa direção. É, não tem jeito, tem que matar, mas ele é
grande, disse ele. Você não quer fazer isso, perguntei. Não, eu
não, se tu não consegue vamos deixar ele aí que até amanhã ele
vai ter morrido. Não, não vou deixá-lo aqui sofrendo.
Caminhei até o outro lado da rua e acompanhei a penosa travessia do
cão, que se arrastou até mim com a força que lhe restava nas patas
dianteiras. Empunhei firmemente o machado e levantei-o. O cão
manteve o olhar fixo em meus olhos, com o mesmo ar suplicante.
Suspendi o gesto e ele fechou os olhos, dando-me coragem para
concluir o movimento.
Desferi o golpe com a parte de trás do machado e esmaguei-lhe o
crânio. O bicho esticou-se no chão mas não morreu. Suas patas
dianteiras retesaram-se e ele convulsionou. Bati-lhe novamente, agora
na lateral da cabeça. Os espasmos continuaram e eu repeti o golpe
uma, duas, três vezes, até me lembrar que talvez ele já estivesse
morto e os movimentos eram apenas ácido lático eletrizado.
Abaixei-me e pus a mão em seu peito, suavemente, procurando
sentir-lhe os batimentos do coração. Só percebi os músculos
relaxando pouco a pouco até cessarem de todo seu movimento.
Meu vizinho aproximou-se e perguntou-me o que eu faria com o corpo do
cachorro. Respondi-lhe que eu teria de cavar um buraco para
enterrá-lo. Ele objetou que era um animal muito grande. Disse-lhe
que não havia outra escolha, pois eu não iria deixá-lo apodrecendo
a céu aberto.
Meu vizinho foi até sua casa e trouxe-nos um enxadão e uma pá.
Cavamos um buraco bem profundo, depositamos o cachorro nele e
fechamo-lo novamente. Agradeci a ajuda do vizinho e ele olhou-me bem
nos olhos antes de dizer disponha, passe bem a noite, garoto.
Quando entrei em casa dirigi-me ao banheiro e, ao olhar-me no
espelho, vi que teria de tomar um demorado banho para limpar todo o
sangue que respingara em mim. Provavelmente enquanto eu erguia o
machado para golpear novamente o cão, o sangue da própria
ferramenta gotejou-me sobre a cabeça, e pequenas gotículas
vermelhas pintavam o meu rosto e minhas roupas continham dezenas de
pequenas manchas.
Durante o banho tentei limpar-me do sangue, da terra e sobretudo da
imagem daqueles olhos que eu sabia serem capazes de enxergar no fundo
de mim. Os olhos suplicantes úmidos da tristeza que implora pela
morte para salvar-se de um sofrimento insuportável.
O fantasma daquele cão acompanhou-me por anos. Até o dia em que um
carro atropelou o Sheidi.
Foi num sábado pela manhã. Eu ainda estava deitado quando ouvi um
carro descendo o morro em alta velocidade e o estouro de um corpo que
se partia sob suas rodas. Levantei-me com o coração saltando-me do
peito e olhei pela janela para confirmar a sensação que me
trespassava a alma: do outro lado da rua, encostado no meio-fio,
estava o corpo do Sheidi deitado, próximo à cadelinha no cio que o
fizera descumprir minhas ordens.
Antes mesmo de sair porta a fora eu já me engasgava com meu pranto.
Corri desesperadamente ainda pensando que se eu fosse depressa
poderia salvá-lo, custasse quanto custasse levá-lo ao veterinário.
Uma enorme mancha de sangue que voara de sua boca, grosso como eu
nunca vira, freou-me os passos. Meu cachorrinho como que tossia
sufocado e em desespero, expelindo uma baba vermelha. O carro passara
com as rodas sobre sua barriga e esmagara-o.
Voltei correndo para casa e minha mãe perguntou-me chorando é o
Sheidi? Respondi sim, é ele, já com a enxada na mão. Corri até
ele, peguei-o nos braços e levei-o até o terreno baldio. Coloquei-o
no chão e despedi-me dizendo adeus, meu amigo querido. Levantei
rapidamente a enxada porque eu já me repreendia por estar fazendo-o
esperar tanto pelo alívio de seu sofrimento. Acertei-lhe na cabeça
e então aconteceu o que de pior já me aconteceu nesta vida: ele,
que até então estivera com os olhos fechados, contorceu-se, virou o
corpo, ergueu a cabeça e arregalou os olhos mui redondos para mim,
cheios de angústia e medo. Eu solucei e reuni minhas forças para
desferir-lhe um golpe ainda mais duro, disse numa voz aflita,
sufocando-me, morre, Sheidi, por favor, morre, e outro, e outro, até
enfim o derradeiro golpe entregá-lo à morte.
Parei extenuado, os braços caídos, a enxada largada no chão. Minha
mãe assistiu a tudo da sacada, as mãos entrelaçadas lavadas em
pranto.
Recompus-me com dificuldade, cavei um buraco e pu-lo lá dentro.
Instalei a mangueira na torneira externa e lavei o sangue da rua.
Sei que fiz o que devia ser feito. Fiz-lhe a única coisa que podia
para eliminar a sua dor. Mesmo assim estou aqui hoje, Sheidi, meu
amigo querido, estou aqui hoje pedindo-lhe, pedindo perdão.
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