quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Matar um cão


Matar um cão nem sempre é uma tarefa fácil. Há várias circunstâncias que colaboram ou prejudicam o sacrifício do animal: tamanho do bixo, idade, peso, vitalidade, tamanho da enxada com a qual se bate em sua cabeça, horário da execução, força e precisão do golpe. É no entanto o dono do cachorro o fator determinante: quando o dono é desconhecido, em geral basta uma pancada; quando o dono é quem executa, a coisa se complica.
A primeira vez que tive consciência do sofrimento de um animal foi na infância, contava eu nove anos. Meu tio criava galinha e trouxe-me um pinto na palma da mão. Disse-me que era um pobre animalzinho aleijado e pediu-me que eu abreviasse seu sofrimento, pois ele não conseguiria sobreviver entre os pintos normais. Falou que tinha pena do bichinho e que não tinha coragem de matá-lo. Alcançou-mo e disse mata-o como achar melhor.
Eu o apanhei de sua mão com todo o cuidado. Analisei suas patas fraturadas e detive-me em seus olhos que me fitavam de um modo bastante singular, como nunca alguém me havia fitado antes. Sua plumagem era macia, de um amarelo claro, e seu bico piava a intervalos regulares um piu discreto e triste. Entendi que ele sofria e que, conforme dissera meu tio, que se retirara, meu gesto seria piedoso, um favor que eu faria àquela pequenina ave.
Ergui-o acima de minha cabeça, estiquei o braço e lancei-o contra o solo o mais violentamente que pude. O pintinho estalou no chão e morreu.
Antes disso eu judiara de moscas como todo menino normal. Capturava-as com uma armadilha muito simples feita com um saco plástico, água e açúcar, ou usava minhas próprias mãos em concha para surpreendê-las pousadas sobre a mesa. Eu as mantinha em saquinhos transparentes e experimentava diversas brincadeiras, vulgarmente classificadas como torturas: de umas arrancava as asas, de outras além das asas retirava as pernas, às vezes duas fazendo-as quadrúpedes, às vezes quatro tornando-as bípedes. A estas todas eu libertava para analisar seu comportamento e estudar o quanto viviam sem asas, andando pelo chão. Mas logo me enjoava e matava-as com uma chinelada.
Um dia capturei uma dezena de moscas e projetei um inusitado avião. Com um palito de picolé fiz o corpo da aeronave e com o outro atravessado em cruz sobre aquele montei as asas. Sobre estas colei as moscas, cinco de cada lado. Eu calculava que era o número suficiente para fazer o avião decolar. Tendo-as fixado liberei o avião, que eu prendera à mesa com fita adesiva. As moscas bateram as asas e o brinquedo subiu desajeitado, pendendo ora para um ora para outro lado. Diverti-me com o descompasso e em seguida frustrei-me com a falta que a persistência fazia às moscas, que em seguida arrefeceram e fizeram o avião estatelar-se no chão. Algumas ainda tentaram voar mas logo todas se puseram prostradas. Repreendi-as com severidade e puni-as esmagando-as sob meu pé, partindo o avião em pedaços.
Depois das moscas ofereceram-me o pinto. Matei-o sem convicção, e à noite ponderei que eu podia tê-lo salvo se me oferecesse para alimentá-lo, retirando-o do convívio com os outros pintos, os quais sem dúvida o matariam ou o levariam à morte por não lhe permitir chegar à comida nem à água. Foi muito diverso o que senti ao ver o primeiro cão atropelado que matei.
Minha casa ficava em uma baixada, numa esquina com fluxo intenso de veículos e habitada por muitos cães vadios, abandonados em uma mata próxima e que, famintos, vasculhavam as lixeiras da região. Nos finais de semana os carros passavam mais depressa do que o habitual, conduzidos por motoristas em geral abastecidos por cervejas. Dessa combinação resultavam constantes atropelamentos. Dos cães.
Era sábado à noite e ouvi um estrondo. Abri a porta e vi algo peludo estirado no meio da rua. Hesitei mas saí para ver o que era. Aproximei-me e vi um cãozinho vira-latas deitado de lado somente com três patas. Olhei em volta e vi que a quarta fora de fato arrancada e rolara até a calçada. O bichinho estava contudo vivo, calado, procurando-me com os olhos. Sua respiração estava rápida mas ele não ofegava, via-se apenas sua barriga inflar enchendo-se de ar e esvaziando-se bruscamente.
Muitos cães eram atropelados e saíam gritando e correndo. Estes curavam-se sozinhos e logo se os via saltitando pelas ruas, revirando latas e roendo lixo. Aqueles que ficavam parados em silêncio no asfalto, contudo, não tinham outro jeito senão serem mortos.
Andei de volta para casa e peguei a enxada. Caminhei até o cãozinho, arremessei a ferramenta até o terreno baldio do outro lado da rua e voltei para conduzir o animal até o local de seu sacrifício. Retirei-o do meio da rua para que eu próprio não sofresse destino semelhante ao seu. Quando peguei-o, embora tenha-o feito cuidadosamente, ele gritou um ai ai ai carregado de dor. Controlou-se porém e engoliu o sofrimento, aceitando-se ser carregado até o outro lado da rua.
Posicionei-lhe numa pequena elevação do terreno, pus sua cabeça recostada em um montículo de grama e acariciei-lhe suavemente entre as orelhas. Peguei a enxada e golpeei sua cabeça com uma pancada desferida velozmente e com toda a força que eu era capaz de alcançar aos dez anos. Fi-lo de modo preciso, acertando-lhe bem entre os olhos. Seu crânio partiu-se, como pude avaliar pelo barulho, mas sua pele não rasgou, de modo que ele não sangrou mais do que sangrara com a perda da perna.
Nunca entendi como uma pessoa pode fazer algo tão brutal quanto abandonar seu cãozinho de estimação. Os donos chegavam de carro com o bicho num saco escuro, abriam a porta do veículo e atiravam o bicho para fora, com saco e tudo. O cachorro esforçava-se para libertar-se e, quando o fazia, sentava-se num ponto da calçada e punha-se a esperar. Sem dúvida pensava que não poderia sair dali, sob pena de o dono não o encontrar quando voltasse para buscá-lo, uma vez que nenhum cão pode acreditar ter sido abandonado. Certamente eles pensam que o dono distraiu-se e deixou que o saco onde o carregava caísse do veículo. Ou pensam que se trata de uma brincadeira. Alguns imaginam que a brincadeira seja encontrar o dono ou o caminho de volta para casa e se põem a farejar e correr atrás da pista.
Era muito triste ver os outros, aqueles que ficavam parados, olhando com olhos tristes em redor, paralisados pela estranheza e postos em movimento somente quando a fome lhes impunha partir em busca de comida. Eu os via definhar nas primeiras semanas, emagrecendo e baixando a cabeça, arrastando as orelhas pelo chão. Até que, talvez por serem cães, davam a volta por cima e se punham altivos, formavam grupos, desbravavam novos lugares atrás de lixeiras a latir para outros cães.
Eu tinha nesta época um cãozinho de porte médio chamado Pateta. O nome indicava sua condição intelectual desfavorecida e seu atabalhoamento. Ele não aprendia nada do que eu lhe ensinava e ainda se mostrava desengonçado. Por isso eu o mantinha atado e só saía para passear com ele preso à guia. Porém um dia ele soltou-se e foi atropelado.
Seus ferimentos no entanto não foram graves e eu e minha mãe esforçamo-nos para curar-lhe as feridas. Não houve fraturas nem amputações. Com pomadas e um spray roxo barato deixamo-lo novo em três semanas. Mas o atropelamento seguinte era questão de tempo. Reforcei sua corrente e coleira e evitei-o por mais de um ano, tempo ao cabo do qual um automóvel partiu-lhe a espinha.
Recolhi meu cãozinho do asfalto onde ele choramingava baixinho. Pu-lo sobre um cobertor e acariciei-lhe enquanto se acalmava. Esperei que ele serenasse e avaliei a gravidade de sua lesão. Minha mãe disse entre lágrimas que ele tinha a coluna fraturada. Eu respondi que aguardaria até o dia seguinte para confirmar se não era impressão apenas e se não havia a possibilidade de o meu cachorrinho viver.
Era uma época em que os veterinários não eram encontrados em cada esquina, e mesmo que os houvesse aos milhões a pobreza de minha mãe não nos permitiria pagar a consulta nem o tratamento. Todos se relacionavam com os animais segundo a cultura da interrupção do sofrimento por meio do sacrifício.
Foi a isso que tive de me render no dia seguinte, arrependido de tê-lo deixado sofrendo a noite toda. Pateta continuava deitado na mesma posição e me olhava com seus olhos úmidos, suplicantes. Aqueles mesmos olhos das vítimas anteriores, redondos, brilhando envoltos numa película de tristeza, implorando ajuda em silêncio. A maldição não são os gritos ou uivos da pancada, o terrível mesmo é o olhar que nos dirigem aqueles que reconhecem sua condição irremediável e suplicam que se lhes abrevie o sofrimento.
Precisei bater três vezes na cabeça do Pateta para certificar-me de que o matara e que não lhe impusera um sofrimento ainda maior. Enterrei-o mais profundamente que os outros cães que eu matara, talvez para sepultar junto com ele o meu sofrimento por sua perda. Quando voltei para casa, juntei minhas lágrimas às de minha mãe e abracei-a ainda sujo de terra, soluçando como a criança que eu era. Pedi-lhe que nunca mais tivéssemos um cachorro porque nunca mais eu queria matar nenhum bicho.
Mas meses depois um outro vira-latas já morava na casinha que fora do meu querido e fiel amigo. Era preto como o outro e com a pelagem lisa e brilhante. Ao contrário daquele, porém, o Sheidi era esperto e coordenava muito bem seus movimentos. A primeira coisa que lhe ensinei foi que não podia ir na rua sem mim.
Amarrava-o cuidadosamente, mas não podia contar com o azar de, se ele se soltasse, ter o mesmo destino do Pateta. Sheidi aprendeu tão bem que a primeira coisa que fez ao soltar-se pela primeira vez foi arranhar a porta de casa e latir me chamando para brincar. Mimei-o muito parabenizando-o, enchendo-lhe a boca de guloseimas caninas, restos de carne e ossos do almoço.
Sheidi viveu seis anos. Neste meio tempo, tive de matar um cão grande, o maior que já sacrifiquei. Era um vira-latas marrom de uns trinta quilos, cabeça grande e sem rabo. Parecia até de raça, mas não devia ser por estar perdido num domingo à noite.
Escutei o barulho do atropelamento e, pelo volume, imaginei que pudesse ter sido uma pessoa. Enganei-me, porém. Sentado na calçada diante da minha casa o cachorro olhava na minha direção. Estranhei. Permaneci fitando-o por alguns instantes e reconheci nos seus olhos o que sua atitude contrariava. Desci as escadas e dirigi-me até ele. Parei diante do bicho e ele permaneceu imóvel, olhando-me com aqueles malditos olhos suplicantes, redondamente úmidos por aquela comovente tristeza.
Abaixei-me para vê-lo mais de perto, e foi então que percebi que suas patas traseiras estavam posicionadas de um modo estranho. O motivo, como pude concluir depois de dar a volta, era uma torção em sua coluna. O cachorro fora partido ao meio e sua espinha girara noventa graus. Olhei para sua cabeça e avaliei que minha enxada era muito leve para matá-lo.
Um dos vizinhos saiu de casa e veio ver o que se passava. Expliquei-lhe a situação e perguntei se ele não poderia ajudar-me a matar o animal. Ele respondeu-me deixa que ele morre sozinho, do jeito que está amanhecerá morto. Eu respondi-lhe que não deixaria o cão sofrer a noite inteira e que daria um jeito na situação sem a ajuda dele. Ele deu as costas e voltou para sua televisão.
Fui até o outro vizinho e bati na porta de sua casa. Perguntei você não tem aí um machado para me emprestar, um cachorro grande foi atropelado e eu preciso de uma coisa pesada para sacrificá-lo. Tenho, tenho sim, respondeu ele indo apressadamente buscar a ferramenta. Toma, pega, eu vou junto contigo.
Era um homem de uns quarenta anos, com mulher e duas filhas. Acompanhou-me até perto do cão, o qual arrastou-se dois passos em nossa direção. É, não tem jeito, tem que matar, mas ele é grande, disse ele. Você não quer fazer isso, perguntei. Não, eu não, se tu não consegue vamos deixar ele aí que até amanhã ele vai ter morrido. Não, não vou deixá-lo aqui sofrendo.
Caminhei até o outro lado da rua e acompanhei a penosa travessia do cão, que se arrastou até mim com a força que lhe restava nas patas dianteiras. Empunhei firmemente o machado e levantei-o. O cão manteve o olhar fixo em meus olhos, com o mesmo ar suplicante. Suspendi o gesto e ele fechou os olhos, dando-me coragem para concluir o movimento.
Desferi o golpe com a parte de trás do machado e esmaguei-lhe o crânio. O bicho esticou-se no chão mas não morreu. Suas patas dianteiras retesaram-se e ele convulsionou. Bati-lhe novamente, agora na lateral da cabeça. Os espasmos continuaram e eu repeti o golpe uma, duas, três vezes, até me lembrar que talvez ele já estivesse morto e os movimentos eram apenas ácido lático eletrizado.
Abaixei-me e pus a mão em seu peito, suavemente, procurando sentir-lhe os batimentos do coração. Só percebi os músculos relaxando pouco a pouco até cessarem de todo seu movimento.
Meu vizinho aproximou-se e perguntou-me o que eu faria com o corpo do cachorro. Respondi-lhe que eu teria de cavar um buraco para enterrá-lo. Ele objetou que era um animal muito grande. Disse-lhe que não havia outra escolha, pois eu não iria deixá-lo apodrecendo a céu aberto.
Meu vizinho foi até sua casa e trouxe-nos um enxadão e uma pá. Cavamos um buraco bem profundo, depositamos o cachorro nele e fechamo-lo novamente. Agradeci a ajuda do vizinho e ele olhou-me bem nos olhos antes de dizer disponha, passe bem a noite, garoto.
Quando entrei em casa dirigi-me ao banheiro e, ao olhar-me no espelho, vi que teria de tomar um demorado banho para limpar todo o sangue que respingara em mim. Provavelmente enquanto eu erguia o machado para golpear novamente o cão, o sangue da própria ferramenta gotejou-me sobre a cabeça, e pequenas gotículas vermelhas pintavam o meu rosto e minhas roupas continham dezenas de pequenas manchas.
Durante o banho tentei limpar-me do sangue, da terra e sobretudo da imagem daqueles olhos que eu sabia serem capazes de enxergar no fundo de mim. Os olhos suplicantes úmidos da tristeza que implora pela morte para salvar-se de um sofrimento insuportável.
O fantasma daquele cão acompanhou-me por anos. Até o dia em que um carro atropelou o Sheidi.
Foi num sábado pela manhã. Eu ainda estava deitado quando ouvi um carro descendo o morro em alta velocidade e o estouro de um corpo que se partia sob suas rodas. Levantei-me com o coração saltando-me do peito e olhei pela janela para confirmar a sensação que me trespassava a alma: do outro lado da rua, encostado no meio-fio, estava o corpo do Sheidi deitado, próximo à cadelinha no cio que o fizera descumprir minhas ordens.
Antes mesmo de sair porta a fora eu já me engasgava com meu pranto. Corri desesperadamente ainda pensando que se eu fosse depressa poderia salvá-lo, custasse quanto custasse levá-lo ao veterinário.
Uma enorme mancha de sangue que voara de sua boca, grosso como eu nunca vira, freou-me os passos. Meu cachorrinho como que tossia sufocado e em desespero, expelindo uma baba vermelha. O carro passara com as rodas sobre sua barriga e esmagara-o.
Voltei correndo para casa e minha mãe perguntou-me chorando é o Sheidi? Respondi sim, é ele, já com a enxada na mão. Corri até ele, peguei-o nos braços e levei-o até o terreno baldio. Coloquei-o no chão e despedi-me dizendo adeus, meu amigo querido. Levantei rapidamente a enxada porque eu já me repreendia por estar fazendo-o esperar tanto pelo alívio de seu sofrimento. Acertei-lhe na cabeça e então aconteceu o que de pior já me aconteceu nesta vida: ele, que até então estivera com os olhos fechados, contorceu-se, virou o corpo, ergueu a cabeça e arregalou os olhos mui redondos para mim, cheios de angústia e medo. Eu solucei e reuni minhas forças para desferir-lhe um golpe ainda mais duro, disse numa voz aflita, sufocando-me, morre, Sheidi, por favor, morre, e outro, e outro, até enfim o derradeiro golpe entregá-lo à morte.
Parei extenuado, os braços caídos, a enxada largada no chão. Minha mãe assistiu a tudo da sacada, as mãos entrelaçadas lavadas em pranto.
Recompus-me com dificuldade, cavei um buraco e pu-lo lá dentro. Instalei a mangueira na torneira externa e lavei o sangue da rua.
Sei que fiz o que devia ser feito. Fiz-lhe a única coisa que podia para eliminar a sua dor. Mesmo assim estou aqui hoje, Sheidi, meu amigo querido, estou aqui hoje pedindo-lhe, pedindo perdão.

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