Era
o pior ônibus da frota. Conduzia as crianças dos bairros até a
Escola Estadual Vidal de Negreiros. A escola era boa e seu nome fora
dado em homenagem a um homem notável, mas cuja importância e feitos
os alunos não lembravam. As paradas do ônibus eram marcadas pela
aglomeração da gurizada, que, em dias de chuva, ficava espiando com
orelhas atentas pelas venezianas de casa e saíam correndo com
guarda-chuvas escangalhados quando ouviam o ônibus aproximar-se.
Mais
tarde construíram paradas de tijolos cobertas com telhas de amianto.
Era um espaço com menos de três metros quadrados, dentro do qual
nos espremíamos para fugir à chuva ou nos proteger do sol. O teto
era baixo, dois metros de altura, e não havia bancos para sentar. Eu
ficava de pé, poste sem luz, ouvindo as conversas alheias ou falando
com meu amigo Pedro, com o qual discutia raramente sobre futebol. Ele
era colorado, eu era gremista.
Minha casa ficava na baixada, e
primeiro o ônibus subia um morro enorme para pegar o pessoal lá de
cima, depois voltava e buscava a turma de baixo. Nós ficávamos na
calçada, esperando. Alguns conversavam. Eu não era muito de falar.
Punha-me paradinho com minha mochila e ficava olhando a rua. O
asfalto era bonito, preto, com a pintura amarela no centro. Eu tinha
doze anos.
A sexta série tinha aulas pela
manhã. Aquele dia de inverno nascera nublado, e a escuridão ainda
dominava o ambiente quando fui até a parada. Eu gostava de ir à
escola, principalmente quando tínhamos matemática. Na segunda-feira
tínhamos três períodos de cálculos e problemas, e na quarta mais
dois períodos. Quase ninguém compartilhava minha satisfação pelos
números, mas, apesar disso, havia dois alunos que rivalizavam comigo
nas notas. Competíamos tacitamente para termos as melhores médias,
e eu redobrava meu esforço porque em matemática eles conseguiam
vencer-me.
Mas naquela manhã eu não estava
disposto a estudar. O Grêmio perdera o Mundial de Clubes para o Ajax
e a gozação tomaria parte do dia. Eu não entendia nada de futebol,
tampouco os motivos que alimentavam a rivalidade entre os clubes e
suas torcidas. Na verdade, eu não encontrava nada que justificasse
torcer para o Grêmio. Fazia-o porque meus pais eram gremistas e
parece natural que se herde deles o time para quem torcemos.
O
fato é que o futebol era uma diversão, fosse jogando, fosse
assistindo. E era bem legal brincar com os amigos, vangloriar-se do
Grêmio ter vencido ou zoar porque o Inter perdera. Mas desta vez
fora o Grêmio quem perdera. E logo o campeonato mais importante do
mundo, o qual ganháramos treze anos antes. Perdemos nos pênaltis. E
desta vez foi doído. Eu hasteara uma bandeira de plástico, daquelas
que vêm nos jornais, amarrando-a em uma taquara e fixando-a com
arame numa árvore do pátio lá de casa. A bandeira ficou
tremulando, vice-campeã. Tive vergonha de recolhê-la logo, mesmo
sabendo que zombariam dela.
Eu preparava frases defensivas,
do tipo pelo menos chegamos lá, e vocês que nem na Libertadores
estavam... Contudo eu estava? Sentia-me meio patético, mas
reconhecia que só era assim porque o Grêmio perdera. Se tivesse
vencido eu estaria altivo, sorrindo, zoando a gurizada colorada. E
tinha a aposta.
O Pedro nem bom-dia me disse, já
foi logo dizendo merda contra meu time, com aquela boca babosa dele,
os dentes grandes e tortos expostos atrás dos lábios. Me dava nojo
vê-lo falar chupando a saliva que abundante se precipitava sempre
quase escorrendo. Ele me olhou com olhos gulosos, faminto de me
atazanar. Eu nem dei bola, fiz que não era comigo, no máximo dei de
ombros. Isso o perturbou. Franziu a testa, fechou a cara e disparou
tá me devendo duas passagens.
Fora isso que apostáramos: duas
passagens. Era uma miséria de aposta, e eu nem me importava de vir a
pé do colégio na hora do meio dia. Eu até gostava, porque assim
não era quem requentava o almoço deixado pela minha mãe para meu
irmão e eu, nem era eu quem tinha então de arrumar a mesa. Mas o
Pedro dissera aquilo com uma arrogância que me afetou, mexeu com
algo na minha barriga, que se revirou e subiu até a metade do meu
peito, enchendo-o de um não sei quê.
Eu disse que o jogo terminara
empatado, de modo que ninguém vencera nem perdera. Os pênaltis não
contam. Pedro sorriu achando que eu debochava. Tá zoando com a minha
cara? perguntou ele, irônico e enfezado. Nisso, as gurias pararam de
conversar e nos olharam, percebendo o tom de desafio nas palavras do
meu amigo. Eu insisti que, oficialmente, o resultado do jogo seria
considerado empate, e portanto nossa aposta devia ser resolvida
também dessa forma.
Pedro
esticou o braço e pegou-me pelo pescoço, empurrando-me contra a
parede da parada. Arregalei os olhos e soltei a mochila que eu
segurava pela mão. Assustado, levei a mão à garganta. Eu sufocava,
atônito, com a respiração bloqueada, com medo de que os olhos
saltassem da minha cara. Sentia nas costas e na parte posterior da
cabeça os tijolos machucando minha pele e a mão de Pedro esmagando
minha garganta. Pedro ameaçou arrebentar a minha cara se eu não lhe
pagasse as passagens.
Todos de repente tinham parado
tudo e nos olhavam. E duas malditas lágrimas explodiram dos meus
olhos e escorreram bochechas abaixo. Senti os olhares de todos
acompanhando-as e pensei que o rubor de minha face envergonhada,
queimando de vergonha, as fizesse evaporar.
Pedro soltou meu pescoço e
quando tentei respirar novamente me engasguei. Num reflexo,
encurvei-me e tossi alargando a gola do uniforme, procurando
libertar-me da opressão que aquela mão deixara mesmo que não
estivesse mais a apertar-me. Quando consegui me recompor e erguer-me,
ainda me fuzilavam. Os olhares de todos eram como balas metálicas
atravessando meu corpo, que parecia estar em chamas. Minha cara era
como um fósforo de cabeça vermelha. Um fósforo com duas lágrimas
pingando do queixo.
Passei a mão no rosto,
secando-o. Em volta, tudo era silêncio. Mirei o asfalto e
concentrei-me na estrada. O ônibus apontou, embalou e subiu o morro.
Os minutos que se seguiram cavaram um abismo gigante no tempo, que se
dilatou maldosamente. Eu tentava respirar de modo natural, mas um
ruído estranho ocorria sempre que o ar passava pela minha garganta.
E era só isso que se ouvia: o som estranho de minha respiração.
Quando
o ônibus parou senti um alívio frio percorrendo meu corpo e percebi
que meu sangue, injetado de adrenalina, começaria a se acalmar,
ainda que eu tivesse certeza de que o rubor permaneceria.
Era um ônibus velho, com a
pintura desbotada, mal dando para ver o número noventa desenhado de
vermelho. Os vidros empapados de suores antigos misturados ao pó de
estradas ruins e fumaças escuras. Roncava e gania, balançava e
tremia, sem força no motor nem molas nas rodas. Atrasava com
frequência e costumava faltar no retorno ao meio-dia.
Entrei e sentei-me no primeiro
banco, bem na frente porque todos procuravam os bancos do fundo.
Assim, eu não veria mais aqueles olhos cuja expressão de pena
denunciava minha pequenez e inferioridade. Eu estava disposto a
tolerar os risinhos das gurias, seus comentários venenosos, bem como
todas as provocações e deboches dos guris. Mas aqueles olhos de
pena eram demais.
Enfiei-me em mim mesmo e olhei
duro para a frente, com as costas arqueadas numa corcunda defensiva.
Eu não via nada além da cena repetida em minha mente, projetada no
banco à minha frente. Era um banco inteiriço para dois passageiros
com a parte externa do encosto revestida por uma superfície lisa, de
madeira e plástico branco: era nisso que minha vergonha era
projetada, como numa tela de cinema.
Era como se eu saísse de mim
mesmo e visse o que aconteceu como um dos espectadores. De repente
pela direita, súbito pela esquerda, de frente. E num instante era
como se eu fosse a parede, vendo-me de costas e revendo os olhos
injetados do Pedro, a boca se contorcendo raivosa, um fio de baba
escorrendo pelo queixo.
Não percebi nada do caminho. De
esguelha eu só via os telhados e as nuvens de chuva pela janela do
ônibus. A perspectiva de quem viaja de cabeça baixa vendo a
paisagem com o canto do olho. O que eu queria era que a viagem se
prolongasse, que eu não chegasse nunca à escola. Curiosamente,
parecia-me melhor ficar ali, encolhido, açodado pelos cochichos, do
que ter de erguer-me e frequentar a aula.
Eu
não poderia somar e multiplicar se algo de mim fora subtraído, se
eu mesmo fora diminuído e dividido em dois por aquela mão esmagando
minha goela.
Mas o ônibus avançava e era
forçoso que chegasse a seu destino.
A escola ficava no alto de um
morro. O ônibus subia-o lentamente e, depois, descia-o pelo outro
lado para recolher-se à garagem. A fumaça saía do escapamento em
grossos rolos, golfadas pretas expelidas num ruído estrondoso. O
ônibus tremia do esforço, e eu tremia da expectativa de sair dali e
ficar de novo frente a frente com o mundo que eu pusera às minhas
costas.
O motorista reduziu a velocidade,
pisou no freio, posicionou o ônibus mais próximo à calçada,
margeando o meio-fio. Pressionou o pedal do freio até o fundo e o
ônibus brecou já apontando a frente morro abaixo. O motorista puxou
o freio de mão e acionou o dispositivo que abria a porta. Esta
abiu-se dividindo-se em um par de vidros ladeados por metais pintados
de amarelo e vermelho.
Os outros se demoravam nos bancos
e então ergui-me. Entreguei cabisbaixo a passagem mas o motorista
não conseguiu pegá-la pois, quando esticou a mão, o ônibus
moveu-se porque o freio de mão estalara arrebentando-se e o veículo
pôs-se em movimento. O motorista puxou o freio de mão novamente e
pisou no freio. Este assobiou e o cabo chicoteou partindo-se. Então
eu pulei porta afora e rolei pelo chão até chocar-me contra o muro.
O ônibus acelerou pelo morro e
os gritos voaram pelas janelas enquanto mãos e braços debatiam-se
pedindo socorro.
As pessoas pararam atônitas,
estátuas cujos olhos acompanhavam a massa metálica que deslizava
pelo asfalto. Eu levantei, limpei a sujeira dos joelhos, esfreguei os
cotovelos e entrei pelos portões da escola no momento em que a chuva
começava a cair.
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