quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Expresso União número 90



Era o pior ônibus da frota. Conduzia as crianças dos bairros até a Escola Estadual Vidal de Negreiros. A escola era boa e seu nome fora dado em homenagem a um homem notável, mas cuja importância e feitos os alunos não lembravam. As paradas do ônibus eram marcadas pela aglomeração da gurizada, que, em dias de chuva, ficava espiando com orelhas atentas pelas venezianas de casa e saíam correndo com guarda-chuvas escangalhados quando ouviam o ônibus aproximar-se.
Mais tarde construíram paradas de tijolos cobertas com telhas de amianto. Era um espaço com menos de três metros quadrados, dentro do qual nos espremíamos para fugir à chuva ou nos proteger do sol. O teto era baixo, dois metros de altura, e não havia bancos para sentar. Eu ficava de pé, poste sem luz, ouvindo as conversas alheias ou falando com meu amigo Pedro, com o qual discutia raramente sobre futebol. Ele era colorado, eu era gremista.
Minha casa ficava na baixada, e primeiro o ônibus subia um morro enorme para pegar o pessoal lá de cima, depois voltava e buscava a turma de baixo. Nós ficávamos na calçada, esperando. Alguns conversavam. Eu não era muito de falar. Punha-me paradinho com minha mochila e ficava olhando a rua. O asfalto era bonito, preto, com a pintura amarela no centro. Eu tinha doze anos.
A sexta série tinha aulas pela manhã. Aquele dia de inverno nascera nublado, e a escuridão ainda dominava o ambiente quando fui até a parada. Eu gostava de ir à escola, principalmente quando tínhamos matemática. Na segunda-feira tínhamos três períodos de cálculos e problemas, e na quarta mais dois períodos. Quase ninguém compartilhava minha satisfação pelos números, mas, apesar disso, havia dois alunos que rivalizavam comigo nas notas. Competíamos tacitamente para termos as melhores médias, e eu redobrava meu esforço porque em matemática eles conseguiam vencer-me.
Mas naquela manhã eu não estava disposto a estudar. O Grêmio perdera o Mundial de Clubes para o Ajax e a gozação tomaria parte do dia. Eu não entendia nada de futebol, tampouco os motivos que alimentavam a rivalidade entre os clubes e suas torcidas. Na verdade, eu não encontrava nada que justificasse torcer para o Grêmio. Fazia-o porque meus pais eram gremistas e parece natural que se herde deles o time para quem torcemos.
O fato é que o futebol era uma diversão, fosse jogando, fosse assistindo. E era bem legal brincar com os amigos, vangloriar-se do Grêmio ter vencido ou zoar porque o Inter perdera. Mas desta vez fora o Grêmio quem perdera. E logo o campeonato mais importante do mundo, o qual ganháramos treze anos antes. Perdemos nos pênaltis. E desta vez foi doído. Eu hasteara uma bandeira de plástico, daquelas que vêm nos jornais, amarrando-a em uma taquara e fixando-a com arame numa árvore do pátio lá de casa. A bandeira ficou tremulando, vice-campeã. Tive vergonha de recolhê-la logo, mesmo sabendo que zombariam dela.
Eu preparava frases defensivas, do tipo pelo menos chegamos lá, e vocês que nem na Libertadores estavam... Contudo eu estava? Sentia-me meio patético, mas reconhecia que só era assim porque o Grêmio perdera. Se tivesse vencido eu estaria altivo, sorrindo, zoando a gurizada colorada. E tinha a aposta.
O Pedro nem bom-dia me disse, já foi logo dizendo merda contra meu time, com aquela boca babosa dele, os dentes grandes e tortos expostos atrás dos lábios. Me dava nojo vê-lo falar chupando a saliva que abundante se precipitava sempre quase escorrendo. Ele me olhou com olhos gulosos, faminto de me atazanar. Eu nem dei bola, fiz que não era comigo, no máximo dei de ombros. Isso o perturbou. Franziu a testa, fechou a cara e disparou tá me devendo duas passagens.
Fora isso que apostáramos: duas passagens. Era uma miséria de aposta, e eu nem me importava de vir a pé do colégio na hora do meio dia. Eu até gostava, porque assim não era quem requentava o almoço deixado pela minha mãe para meu irmão e eu, nem era eu quem tinha então de arrumar a mesa. Mas o Pedro dissera aquilo com uma arrogância que me afetou, mexeu com algo na minha barriga, que se revirou e subiu até a metade do meu peito, enchendo-o de um não sei quê.
Eu disse que o jogo terminara empatado, de modo que ninguém vencera nem perdera. Os pênaltis não contam. Pedro sorriu achando que eu debochava. Tá zoando com a minha cara? perguntou ele, irônico e enfezado. Nisso, as gurias pararam de conversar e nos olharam, percebendo o tom de desafio nas palavras do meu amigo. Eu insisti que, oficialmente, o resultado do jogo seria considerado empate, e portanto nossa aposta devia ser resolvida também dessa forma.
Pedro esticou o braço e pegou-me pelo pescoço, empurrando-me contra a parede da parada. Arregalei os olhos e soltei a mochila que eu segurava pela mão. Assustado, levei a mão à garganta. Eu sufocava, atônito, com a respiração bloqueada, com medo de que os olhos saltassem da minha cara. Sentia nas costas e na parte posterior da cabeça os tijolos machucando minha pele e a mão de Pedro esmagando minha garganta. Pedro ameaçou arrebentar a minha cara se eu não lhe pagasse as passagens.
Todos de repente tinham parado tudo e nos olhavam. E duas malditas lágrimas explodiram dos meus olhos e escorreram bochechas abaixo. Senti os olhares de todos acompanhando-as e pensei que o rubor de minha face envergonhada, queimando de vergonha, as fizesse evaporar.
Pedro soltou meu pescoço e quando tentei respirar novamente me engasguei. Num reflexo, encurvei-me e tossi alargando a gola do uniforme, procurando libertar-me da opressão que aquela mão deixara mesmo que não estivesse mais a apertar-me. Quando consegui me recompor e erguer-me, ainda me fuzilavam. Os olhares de todos eram como balas metálicas atravessando meu corpo, que parecia estar em chamas. Minha cara era como um fósforo de cabeça vermelha. Um fósforo com duas lágrimas pingando do queixo.
Passei a mão no rosto, secando-o. Em volta, tudo era silêncio. Mirei o asfalto e concentrei-me na estrada. O ônibus apontou, embalou e subiu o morro. Os minutos que se seguiram cavaram um abismo gigante no tempo, que se dilatou maldosamente. Eu tentava respirar de modo natural, mas um ruído estranho ocorria sempre que o ar passava pela minha garganta. E era só isso que se ouvia: o som estranho de minha respiração.
Quando o ônibus parou senti um alívio frio percorrendo meu corpo e percebi que meu sangue, injetado de adrenalina, começaria a se acalmar, ainda que eu tivesse certeza de que o rubor permaneceria.
Era um ônibus velho, com a pintura desbotada, mal dando para ver o número noventa desenhado de vermelho. Os vidros empapados de suores antigos misturados ao pó de estradas ruins e fumaças escuras. Roncava e gania, balançava e tremia, sem força no motor nem molas nas rodas. Atrasava com frequência e costumava faltar no retorno ao meio-dia.
Entrei e sentei-me no primeiro banco, bem na frente porque todos procuravam os bancos do fundo. Assim, eu não veria mais aqueles olhos cuja expressão de pena denunciava minha pequenez e inferioridade. Eu estava disposto a tolerar os risinhos das gurias, seus comentários venenosos, bem como todas as provocações e deboches dos guris. Mas aqueles olhos de pena eram demais.
Enfiei-me em mim mesmo e olhei duro para a frente, com as costas arqueadas numa corcunda defensiva. Eu não via nada além da cena repetida em minha mente, projetada no banco à minha frente. Era um banco inteiriço para dois passageiros com a parte externa do encosto revestida por uma superfície lisa, de madeira e plástico branco: era nisso que minha vergonha era projetada, como numa tela de cinema.
Era como se eu saísse de mim mesmo e visse o que aconteceu como um dos espectadores. De repente pela direita, súbito pela esquerda, de frente. E num instante era como se eu fosse a parede, vendo-me de costas e revendo os olhos injetados do Pedro, a boca se contorcendo raivosa, um fio de baba escorrendo pelo queixo.
Não percebi nada do caminho. De esguelha eu só via os telhados e as nuvens de chuva pela janela do ônibus. A perspectiva de quem viaja de cabeça baixa vendo a paisagem com o canto do olho. O que eu queria era que a viagem se prolongasse, que eu não chegasse nunca à escola. Curiosamente, parecia-me melhor ficar ali, encolhido, açodado pelos cochichos, do que ter de erguer-me e frequentar a aula.
Eu não poderia somar e multiplicar se algo de mim fora subtraído, se eu mesmo fora diminuído e dividido em dois por aquela mão esmagando minha goela.
Mas o ônibus avançava e era forçoso que chegasse a seu destino.
A escola ficava no alto de um morro. O ônibus subia-o lentamente e, depois, descia-o pelo outro lado para recolher-se à garagem. A fumaça saía do escapamento em grossos rolos, golfadas pretas expelidas num ruído estrondoso. O ônibus tremia do esforço, e eu tremia da expectativa de sair dali e ficar de novo frente a frente com o mundo que eu pusera às minhas costas.
O motorista reduziu a velocidade, pisou no freio, posicionou o ônibus mais próximo à calçada, margeando o meio-fio. Pressionou o pedal do freio até o fundo e o ônibus brecou já apontando a frente morro abaixo. O motorista puxou o freio de mão e acionou o dispositivo que abria a porta. Esta abiu-se dividindo-se em um par de vidros ladeados por metais pintados de amarelo e vermelho.
Os outros se demoravam nos bancos e então ergui-me. Entreguei cabisbaixo a passagem mas o motorista não conseguiu pegá-la pois, quando esticou a mão, o ônibus moveu-se porque o freio de mão estalara arrebentando-se e o veículo pôs-se em movimento. O motorista puxou o freio de mão novamente e pisou no freio. Este assobiou e o cabo chicoteou partindo-se. Então eu pulei porta afora e rolei pelo chão até chocar-me contra o muro.
O ônibus acelerou pelo morro e os gritos voaram pelas janelas enquanto mãos e braços debatiam-se pedindo socorro.
As pessoas pararam atônitas, estátuas cujos olhos acompanhavam a massa metálica que deslizava pelo asfalto. Eu levantei, limpei a sujeira dos joelhos, esfreguei os cotovelos e entrei pelos portões da escola no momento em que a chuva começava a cair.

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