sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Saudação aos leitores


Neste blog você encontra alguns dos contos publicados em meus livros e tem a oportunidade de interagir, comentar os textos e opinar sobre eles.
Mas cuidado: alguns contos questionam certos limites, como violência, sexo, relações familiares, amor, e contêm linguagem pesada, com palavrões ou cenas subversivas e imorais. Se for ler, tenha em mente que o politicamente correto é o avesso de minhas pretensões literárias, porque Literatura, para mim, deve causar estranhamento e tirar o leitor de seu lugar-comum, desestabilizando nossas certezas.
Os livros, na íntegra, encontram-se à venda nas melhores livrarias de Estrela, Lajeado e Porto Alegre. Você também pode adquiri-los em formato e-book.
Um forte abraço e boa leitura a todos.
Maiquel

Por Miriam, com amor


Minha esposa e eu vivíamos um amor risonho e doce nos idos de 2003. Éramos recém-casados após dois anos de namoro e um curto período de noivado. Ambos contávamos trinta anos, tínhamos bons empregos e nossos currículos incluíam um mestrado no qual nos conhecêramos e um doutorado que marcou o início de nosso relacionamento, após longos anos de acaloradas discussões. Eu era um professor neoliberal empedernido que pensava que a educação dependia de estudantes empenhados e de professores com grande conhecimento para transmiti-lo. Ela odiava a palavra transmissão e tinha um discurso pós-moderno que incorporava o marxismo, os estudos culturais e tudo que colocava os estudantes burros e preguiçosos como vítimas de um sistema opressor e de uma escola excludente. Divergíamos em tudo até eu vê-la sorrir e perceber que, embora eu nunca concordaria com ela em relação a políticas educacionais, eu sempre quereria fazê-la sorrir daquela maneira.
Apaixonei-me subitamente e não perdi nem um segundo em convidá-la para sair. Disse-lhe esta noite vamos deixar as polêmicas de lado e falar sobre nós, eu mal sei seu nome e passei os últimos anos discordando de você. Ela se mostrou amável e simpática. Nada que se assemelhasse à militante das aulas. Eu levo a pós-modernidade a sério, disse ela, inclusive no que diz respeito a mim mesma, não sou uma só, não sou única, indivisível e especial, sou várias e gosto de poder ser assim, múltipla. E se abriu em um sorriso que me convenceu de que, ao contrário do que ela dissera, era único e a fazia absolutamente especial.
Casamos em um sábado à tarde em uma praça no centro da cidade. Não havia padre nem juiz, somente amigos. Ela convidara os alunos, e eles compareceram às centenas. Cada um trouxera bebidas, biscoitos e bolos caseiros. Eu vestira meu melhor terno e ela chegou com um vestido branco de vinte reais, um pequeno buquê de margaridas e uma fita no cabelo. Em todo o mundo nunca houve noiva mais bela. Antes de beijá-la, duas lágrimas desceram dos meus olhos e eu sussurrei olhando-a na alma eu te amo de todo o meu coração. Ela ergueu-se na ponta dos pés que vestiam uma sapatilha rasteirinha e disse a ti entrego hoje meu corpo e meu espírito em sinal do meu amor.
Quando Miriam engravidou fiquei como louco. Abracei-a apaixonadamente e a ergui no ar girando com ela em êxtase, transportado de alegria. A notícia alcançou-me dois meses depois de nos casarmos. Liguei para meus pais eufórico noticiando-lhes que eu seria pai e o primeiro neto estaria em breve chorando em seus braços. Eles sempre lamentaram a singelez do casamento, ao qual faltaram, e nossos hábitos avessos a formalidades e rituais. Mas comemoraram conosco brindando pelo futuro herdeiro.
Miriam floresceu como um ipê e todos os dias converteram-se numa radiante primavera iluminada pelos tenros sorrisos dela. Não houve enjoos nem cólicas nem indisposições e maus humores. Minha esposa era uma dessas raras mulheres a quem a gravidez deixava ainda mais bela. Sua barriga cresceu sem pressa e sem estrias nem inchaços nos pés. Ela a deixava à mostra em blusas que antes jamais usaria.
Ouvimos o coraçãozinho de nosso filho bater e era como o galope insano de um cavalo, um pou pou pou frenético e cheio de vida. Porém ao mesmo tempo tão delicado e frágil. A médica disse que estava tudo bem e mostrou-se muito simpática ao responder as perguntas que Miriam metralhava com uma ingenuidade emocionante. Posso comer carne vermelha? É verdade que preciso comer mais mesmo que eu não tenha fome? Posso dormir de bruços? Eu e o meu marido, a gente pode, ahn, a gente ainda pode... Que linda ela ficava tão bobinha, doutora em Letras e pré-escolar em maternidade.
Eu me punha seguro no papel de pai, segurando sua mão, sorrindo quando podia e pondo-me seriamente atento quando devia. Conversávamos sobre tudo e líamos juntos as revistas sobre gravidez e bebês.
Houve no entanto um dia em que o semblante da médica crispou-se e uma nuvem escura pousou sobre nós. O resultado de um exame apontava algo irregular. A médica folheou alguma coisa procurando uma informação, conferiu o papel que lhe apresentávamos, confrontou-o com algo escrito em um livro grosso e solicitou novos exames.
Perguntamos o que havia e ela disse que por hora não valia a pena nos pôr preocupados. Era melhor realizar com urgência um exame específico para dirimir a dúvida.
Corremos ao laboratório e fizemo-lo. Tratava-se de um procedimento complicado que deixou minha esposa inquieta, para dizer o mínimo. Levou duas semanas para que o resultado ficasse pronto e nesse tempo experimentamos uma angústia sem paralelo em nossas vidas. Voltamos à médica com o envelope lacrado, pois não queríamos antecipar nada. Já pesquisáramos a respeito do exame e o que descobrimos sobre ele nos apontava possibilidades desanimadoras.
Recebemos a confirmação perplexos. Os olhos arregalados e os músculos tensos. Retesamo-nos nas cadeiras que ocupávamos no consultório e percebi que não suportaria o nó que se formara em meu peito. Súbito senti como se algo batesse-me em cheio no meu estômago pondo-me sem ar. Escureceu-se o dia e um pretume espesso invadiu-me os olhos e uma tontura repentina levou-me ao chão.
Estive sem ar e sem tino, despossuído de mim. Ao abrir os olhos Miriam fitava-me assombrada, os olhos vidrados, enormes e vazios. Abria-se entre nós um abismo. Ergui-me num átimo e saltei em seus braços. Enlacei seu corpo mas não alcancei-lhe mais o espírito. Ficáramos em lados opostos da fenda que cindira o mundo em dois.
Nosso filho nasceria, choraria como os outros e como nós fizéramos, sujaria as fraldas e engatinharia pelo chão, com atraso em relação aos outros e em relação a nós quando bebês. Demoraria mais ainda para aprender a falar, e, considerando a especificidade de seu caso, provavelmente jamais aprenderia a ler nem escrever.
Miriam nunca se conformaria. Eu já podia imaginá-la fazendo das tripas coração para inventar mil formas diferentes de explicar-lhe o formato das letras e a correspondência dos sons. Faria desenhos, comporia músicas, encenaria esquetes, desenvolveria peças e equipamentos. Seria incansável. Nunca desistiria de seu filho, como nunca desistia de um aluno.
E esqueceria de mim.
O menino nasceu cercado de afeto de duas famílias que fingiam ser uma só e se esforçavam para disfarçar o desencanto. O menino reagia estranhamente aos estímulos, sem compreendê-los. E sorria ao ouvir minha voz. Somente meus dichotes tolos e minhas caretas, que sempre tinham desagradado Miriam, punham-no a sorrir. Da primeira vez ela me pôs um olhar desaprovador, imediatamente substituído por um sorriso entre um par de lágrimas. Ele é lindo, ela disse. E eu então senti que o amava.
Dividíamos as tarefas como um casal pós-moderno, mas Miriam parecia sempre mais assoberbada do que eu. Ela não suportava as tarefas do lar e concentrava uma energia incomum no trabalho. Preocupava-se com o rendimento de cada aluno, sabia seus nomes, problemas familiares e angústias pessoais. Consumia-se carregando com eles suas cruzes e inquietando-se com seus dilemas. Eu a ouvia e ponderava, dizia-lhe que não era sua função resolver problemas que não diziam respeito à aprendizagem dos conteúdos de suas disciplinas, mas nisso ela jamais me ouvia.
O menino desde que saíra do hospital era acompanhado por uma equipe multidisciplinar responsável por atividades de estimulação. Que, no entanto, de pouco ou nada valiam.
Quando ele fez sete anos fomos obrigados a matriculá-lo em uma escola. Ela achava fundamental; eu achava uma violência. Até então ele frequentara espaços especializados e creches com propostas inclusivas. A escola significava entrar em um mundo onde o aprendizado se dava segundo critérios e metodologias voltados a um público cujas capacidades nem de longe se assemelhavam às de nosso filho. Ele não sabia menos do que os outros. Ele simplesmente não sabia nem poderia algum dia saber. Mas Miriam nunca admitiria isso.
Até então ela confiara no trabalho dos educadores especiais. Mas bastou matricular o menino para que um caminhão de críticas fosse despejado sobre os ombros de professores, direção, coleguinhas, pais, paredes, livros e materiais.
Todos podem aprender, ela teimava. Nosso filho só precisa de mais tempo e de outros métodos, diferentes destes ranços pré-históricos excludentes, discriminatórios, fascistas! E então ela ficava feia.
Com o tempo eu a olhava e já não reconhecia. Não se parecia com a mulher com quem eu casara tampouco com a estudante com quem eu discutia. Não havia mais abertura em seu coração para discussões. Petrificadas em seu peito morriam certezas azedadas por dez anos de frustrações. Quando o menino completou uma década, ela ainda não fora capaz de ensinar-lhe a escrever o próprio nome.
Ele nunca aprenderá a ler, não é? A pergunta doeu em nós dois como uma facada. Sufoquei-me num choro represado e solucei, fragilizado. Ela acompanhou-me com seu pranto e misturamos nossas lágrimas abraçados na cama. Acariciei seu cabelo e velei seu sono. No dia seguinte ela acordaria revigorada para prosseguir seu trabalho de Sísifo lutando contra Deus, o Diabo e o Mundo, defendendo nosso filho dos outros, impondo a todos e a si mesma a aceitação de suas limitações e a adaptação a suas necessidades. Todos e tudo deviam se adaptar a ele. E com isso eu nunca me conformaria.
Meu filho não podia ser motivo para que a escola se descuidasse dos outros. Para mim a inclusão deveria valer para aleijados, cegos, surdos e qualquer pessoa que, apesar de fisicamente limitada, estivesse cognitivamente apta a aprender num ritmo, e agora a terra se abrirá para que o inferno engula a mim e meu preconceito de direita, aprender num ritmo, eu dizia, dentro do padrão médio da normalidade, veja lá o que isso significa.
Eu levava o menino ao parque e jogava com ele uma espécie de futebol. Sua coordenação motora também era limitada e nem os times ele conseguia discernir. Mas adorava brincar comigo. Ria com uma espontaneidade encantadora. Eu não lhe corrigia nem orientava, apenas me divertia passando-lhe a bola e dizendo bobagens para provocá-lo. E ele ria. Feliz.
A presença dos outros o acuava. Miriam o deixava receoso, preocupado em aprender a próxima lição para não decepcioná-la. Quando me via relaxava e sorria antevendo o recreio. Eu não tentava ensinar-lhe nada, só queria que nos divertíssemos junto como pai e filho. Ele não aprontava nada para eu ter de repreendê-lo, então por que atormentá-lo com o que estava além de suas forças?
Miriam e eu nunca conversamos sobre as pílulas anticoncepcionais que ela passou a tomar depois que o menino nasceu. Simplesmente sabíamos que não havia espaço para outro.
Enquanto isso, eu e Miriam tornávamo-nos estranhos. Deitávamos na cama e conversávamos ou sobre o trabalho ou, no quase sempre das vezes, sobre o menino. Nestas ocasiões eu ouvia e calava, sabendo que nada do que eu dissesse seria aceito por ela, a menos que eu dissesse exatamente o que ela pensava. Não valia a pena discutir e deixá-la ainda mais feia.
Baldados eram todos os meus esforços de fazê-la sorrir. O menino gargalhava e ela me olhava com um ar de reprovação. Às vezes no entanto ela abrandava, aproximava-se e num grande esforço participava do brinquedo. Mas seu sorriso já não tinha brilho nem criava primaveras.
E foi então que uma ideia que amadurecia escondida dentro de mim, oculta aos outros e a mim mesmo, mostrou-se claramente. Travou-se em meu peito uma luta intensa que escureceu meus olhos e jogou-me ao chão. Acordei com Miriam gritando meu nome entre lágrimas desesperadas e o menino espremendo-se contra a parede com olhos assustados, enormes e negros. A tontura era tanta que um vômito espesso voou de minhas entranhas como se meu corpo quisesse expulsar o demônio daquela ideia.
Uma semana depois, quando obriguei-me a me olhar no espelho, percebi que eu estava feio. As olheiras inchavam minha cara inteira e meus alunos olhavam-me perplexos, incapazes de questionar-me o que acontecia. Passei a mão pelo rosto espetando-me na barba. Toquei as lágrimas que umedeciam-na. Ajoelhei-me, sentei-me ao lado da pia e chorei até meus olhos de todo secarem.
Concluí que o menino precisava morrer.
A semana seguinte dediquei à pesquisa e aos preparativos. Enquanto lia sobre venenos e modos de dissolvê-los e ministrá-los, fitava-o vendo tevê. Desenhos animados, filmes de ação com explosões e brigas, esportes. Como qualquer outra criança. Exceto porque, quando eu levantava para sentar-me ao seu lado, ele só sabia me responder que estava olhando tevê. E que filme é esse, meu filho? É de briga, pai. E mais do que isso eu não conseguia fazê-lo entender. Quando eu explicava, olhava-me fingindo entender, com os olhos a denunciar que nada compreendera.
E contudo eu o amava. Porém Miriam era um sonho materializado na forma de uma mulher. Um sonho do qual eu percebia agora ser incapaz de desistir. Em uma das mãos eu tinha o menino, na outra eu tinha a mulher de minha vida. Mas eu precisava das duas mãos para segurar cada um destes sonhos. Era portanto necessário escolher.
Numa tarde de terça-feira em que eu estava a sós com o menino, num dia frio de inverno, ofereci-lhe um chá quente e chocolate. Ele adorava chá e chocolate e ficou na sala desenhando enquanto eu preparava tudo na cozinha. Esquentei a água e depois coloquei os saquinhos de chá para dissolvê-los. Servi duas xícaras, tirei do bolso o frasco com o veneno e despejei em uma delas.
Mexi o chá e deixei a colherinha dentro da xícara dele para não me confundir. Levei tudo em uma bandeja, os chás e o chocolate.
Parei diante dele e olhei com ternura seus olhos que brilhavam como os da mãe dez anos antes. Ele era lindo e eu o amava. Queria estreitá-lo em meus braços e protegê-lo do mundo, da obrigação de ir à escola, das regras da Miriam. Queria vê-lo engordar empanturrado de chá e chocolate até explodir numa de suas gargalhadas. Queria brincar com ele e curtir alegremente sua eterna infância. Queria meu Peter Pan para sempre ao meu lado. No entanto, meu querer a Miriam se impunha, dominante.
Queria tanto tê-la de volta. A minha querida. Minha linda. O meu amor. Minha vida. Então servi ao menino o chá. Ele estendeu-me as mãos sorrindo, pegou a xícara e sorveu seu conteúdo ansiosamente.

O vestido amarelo


Em 1990 Miriam completava doze anos. Preparava-se portanto para sua primeira eucaristia. Depois de anos de catequese, receberia em suas mãos o corpo de Cristo e o levaria à boca para comungar diante de sua família orgulhosa e da comunidade inteira numa missa sempre cheia para assistir à homilia do bispo. A mãe preparava compotas desde o início da semana anterior, e branquinhos e cajuzinhos e brigadeiros dias antes, tarefa a que Miriam ajudava com a alegria de uma menina prestes a ingressar em uma nova fase de sua vida.
O pai reforçava a ração do bezerro que há um ano engordava para carnear e servir no domingo da festa. Os familiares já estavam todos convidados desde dois anos antes e nas idas ao bar seu João reforçava o convite aos vizinhos. A mãe por sua vez fazia-o no caminho do armazém ou no balcão deste. A festa da família assim ganhava corpo e pelos cálculos cerca de sessenta pessoas se fariam presentes, posto que ninguém ousaria faltar.
A catequese ocorria todos os sábados à tarde, das catorze às quinze e trinta. As lições semanais incluíam a leitura de trechos da Bíblia, exercícios de interpretação, encenações religiosas, doutrinas católicas, lista dos pecados capitais e mandamentos. Havia provas e notas, e ainda que ninguém pudesse ser reprovado quem não obtinha êxito nos exames era obrigado a ficar depois da hora e tomar lições particulares durante a semana até ficarem a saber o que deviam.
A catequista era uma senhora de setenta anos que ocupava a função de ministra da igreja. Dona Tereza era viúva, vestia saias e blusas cinzas e sapatos escuros em oposição aos cabelos alvíssimos. Não tinha filhos e se mostrava inflexível nas questões disciplinares, não admitindo nem um pio durante as aulas. Os pais e mães adoravam-na e as crianças a temiam. Conforme se esperava e era o certo.
Meninos e meninas compareciam com suas roupas domingueiras, os calçados bem lavados e os cabelos bem penteados. Chegavam cedo e se punham diante da igreja a esperar. Enquanto isso conversavam aos sussurros e, se riam, faziam-no baixinho para não perturbar o sossego de Deus, que repousava na sacristia.
Dona Tereza chegava pontualmente e abria a porta lateral da igreja. Postava-se na entrada e respondia muito tesa ao cumprimento de cada catequizando que entrava. Um a um eles e elas tomavam seus acentos nos bancos laterais da igreja, diante dos quais um quadro-mural servia de lousa. Antes de sentar punham sobre o apoiador as Bíblias que traziam no sovaco, ajoelhavam-se e rezavam por cinco minutos, ao fim dos quais aguardavam calados as ordens da professora.
Moravam em um bairro longe do centro em uma cidade distante da capital do estado. O município contava mais de trinta mil habitantes, mas a comunidade de imigrantes europeus em que viviam tinha pouco mais de mil pessoas. Todos se conheciam e os principais pontos de encontro eram a igreja, a praça, o bar do Hélio e o armazém do seu Juca.
Na turma de catequese de Miriam havia seis meninos e dez meninas.
Depois da catequese os alunos se dispersavam, mas era comum que os meninos se reencontrassem no futebol e no caso das meninas em visitas à casa das amigas. Ao final da última aula, contudo, as moças despediram-se e se recolheram todas a suas casas para auxiliar as mães no preparo dos confeitos.
Os meninos mantiveram a rotina do futebol.
A semana que antecedia a festa era cheia de preparativos e o armazém do seu Juca aproveitava para aumentar as vendas. Cada família organizava as suas comemorações, de modo que quase todos da comunidade estavam convidados para uma das churrascadas. Os habitantes eram em sua maioria pequenos produtores rurais e armavam mesas nos pátios de suas casas para receber as visitas.
Na véspera da festa a mãe de Miriam desdobrava-se entre a finalização das guloseimas, o preparo da maionese, a colheita das saladas e os últimos ajustes no vestido da filha. O pai carneou o bezerro com a ajuda do filho de catorze anos, destrinchou as partes para assar no domingo e antes que o sol se pusesse picou a lenha para o fogo. Em toda a comunidade o cheiro da carne e do sangue dos bezerros erguia miasmas como no tempo dos sacrifícios e o ruído dos machados desfazendo em achas as árvores era uma sonora vibração chamando a alegria para reinar no dia seguinte.
Miriam provou o vestido e posicionou-se para que a mãe finalizasse os últimos detalhes ajustando-o ao corpo da menina. Era um vestido amarelo, de uma cor suave mas marcante, rendas nas mangas, pregas rodadas largas e compridas até o joelho. Combinava perfeitamente com o loiro dos cabelos da menina, com seus olhos azuis e claros e com sua pele de um bege bem suave. Miriam achou-o lindo e surpreendeu-se bonita ao espelho fazendo pose e perguntou se não devia ser um vestido branco.
Você não está indo casar, respondeu a mãe. No entanto as outras meninas estavam de branco. Os rapazes usavam calça social preta, camisa branca, gravata e colete e calçavam sapatos bem lustrados combinando com o gel dos cabelos. Era curioso vê-los metidos naquela beca e enfiados em caras muito sérias.
E as meninas os achavam assim mais bonitos.
A catequista organizou-os em pares para entrarem na igreja, que estava lotada. O bispo iniciou a cerimônia e pediu que entrassem os catequizandos. Todos ergueram-se para recebê-los de pé e havia gente ocupando todos os bancos da igreja e faltavam lugares para um grande número de pessoas de pé pelos cantos.
Calhou que Miriam entrasse ao lado de Francisco.
Percorreram os vinte metros do corredor e se perfilaram em duas colunas ao lado do altar, em posição de destaque. Quando a hora chegou da eucaristia receberam a hóstia sagrada das mãos do bispo ao lado do padrinho e da madrinha, do pai e da mãe, enquanto todos cantavam prometi no meu santo batismo ser fiel a Jesus sem cessar, o que então meus padrinhos falaram hoje mesmo eu vim confirmar.
Miriam arrepiou-se como todos os outros ao sentir derreter-se em sua boca o corpo de Cristo.
A festa foi animada e Miriam divertiu-se e encheu-se de sorrisos para agradecer os presentes que lhe deram. Seu pai no entanto não gostou de terem dito então como é ter um preto na família, hahaha, em alusão ao fato de que Francisco era negro e entrara ao lado de Miriam e ao seu lado ficara durante a missa no local em que dona Teresa mandara. Por isso, ao final da festa seu João pegou o relho, entrou no quarto de Miriam, disse-lhe agora vamo vê se eu vô tê um preto na minha família, segurou-a por um braço e bateu-lhe com toda a força o relho em suas costas.
O vestido desfez-se em tiras e o sangue escorreu pela pele rasgada a cada relhaço. O pai não lhe poupava as costas e as pernas e Miriam logo viu que ele a mataria se ela não fugisse. Lutou para escapar e enquanto soltava-se levou um relhaço no peito que lhe pegou em cheio do pescoço ao seio e abriu-lhe de imediato um veio de sangue.
Aos gritos e soluços irrompeu porta afora e correu desatinada por dois quilômetros. Finalmente faltou-lhe o fôlego e olhou para trás. Ao ver que o pai não a seguia, parou. Chorou ainda mais intensamente ao olhar-se e ver-se em frangalhos, o vestido desfeito em trapos e tingido de sangue. As sapatilhas acumulavam o sangue nos calcanhares e se pegavam em suas meias manchadas. Para onde eu vou, desesperou-se e correu mais um quilômetro até a casa da avó materna.
Dona Maria era viúva, tinha dois filhos morando longe, mostrou-se animada na festa da neta e tomou um grande susto quando ouviu-a chamar vóóóó, vóóóó, pois percebeu-lhe de pronto o desespero. Meu Jesus o que te aconteceu, exclamou com as mãos na cabeça e escancarou rapidamente a porta para que a menina entrasse. Me ajuda vó por favor me ajuda, e dona Maria abraçou-a sem importar-se com o sangue que lhe mancharia as roupas bonitas que ainda não tirara.
Miriam acalmou-se ao fim de uma hora e dois copos de água com açúcar. Dona Maria sentou-a numa poltrona, acomodou-se como pôde ao seu lado, segurou sua mão e estreitou a cabeça da menina em seu regaço. Dizia-lhe pronto, pronto, já passou, ssss, ssss, pronto, pronto, ssss, ssss. Ele vai vim me pegar. Não, não vai, fique em paz que aqui você está segura, e as palavras da avó sossegaram a tremura da neta e pouco a pouco aquietaram-na até finalmente ela estar pronta para despir-se e lavar-se.
A avó aqueceu uma chaleira de água e trouxe uma bacia para o centro da casa. Com cuidado ajudou Miriam a tirar o vestido, que se colara aos ferimentos cujo sangue já secara. A água morna soltou o tecido da carne e quando Miriam estava nua sentiu frio. As feridas ardiam e ela voltou a tremer.
No dia seguinte teve febre. E no outro. E no outro.
Dona Maria passava os dias e noites ao seu lado, sentada à beira da cama em que aninhara a neta. Por uma semana Miriam esteve febril e suara e delirara mas dona Maria nunca pensou que talvez a neta morresse. Ela viveria e isso nem sempre lhe parecia bom.
Ao fim de um mês a mãe de Miriam apareceu, disse oi, mãe, sua bênção. Deus lhe abençoe, minha filha. Já é tempo de a Miriam voltar para casa. Cuide para que teu marido não a mate.
Miriam entrou em casa como um pombo assustado enfiando-se dentro das asas e o pai nunca mais a olhou nos olhos. Esteve a menina por dois anos a ponto de implodir-se de medo e cair no chão desconjuntada até o dia em que levou algumas roupas numa mala para o colégio do centro onde faria o magistério em regime de internato. De lá saiu três anos depois para ser professora e casar com Pedro, a quem conhecera nos corredores da escola. Ele fazia o curso técnico de contabilidade e depois de se formar logrou o quanto pôde seus clientes e patrões.
Quando Miriam foi para a casa dos pais levando os dois filhos pequenos e pedindo pelo amor de Deus que a deixassem viver com eles ouviu do pai que preferia vê-la morta a ter uma filha separada. Então Miriam pegou um filho em cada braço e retornou para a casa do marido engasgando-se com suas lágrimas. Os filhos acompanhavam seu pranto com seu berreiro pueril sem no entanto compartilhar de sua dor.
Resignou-se, ajoelhou diante da imagem de Cristo na cruz, pensou que seu destino era sofrer e rezou pedindo dai-me forças, meu Deus, ajuda-me a aguentar o peso da cruz que me botas nas costas. O marido renegou-a e disse que fosse dormir no quarto dos guris que com ela ele não deitaria mais. E o suplício que ele achou que lhe impingia foi-lhe um refrigério que ela atribuiu à benevolência divina.
O dinheiro que Miriam recebia era pouco e o marido quase nada trazia para casa. Gastava o que tinha com putas e farras. Os filhos cresciam e no entanto o amavam como o herói que ele lhes parecia. Dois meninos que o viram morrer quando o mais velho tinha dezoito anos e o mais novo dezesseis.
Miriam vestiu uma de suas roupas cinzas sem se atinar que o preto cairia melhor ao luto. Já lhe haviam prevenido disso quando o pai morrera, cinco anos antes. Desde que seu vestido amarelo da primeira comunhão manchara-se de sangue ela nunca mais pusera no corpo algo de cor que não fosse cinza ou marrom.
No velório todos cochichavam que bom para a Miriam que o Pedro morreu, ele não valia nada e ainda ficou me devendo. Só os filhos choravam em silêncio a perda do pai, enquanto a viúva permanecia hirta com os olhos postos no caixão e a mente se perguntando como seria agora a vida.
No dia seguinte começaram a aparecer os cobradores com o dedo em riste descompondo-a com impropérios e imprecando xingamentos contra o morto mas que isso não ia ficar assim, ele devia e quem ficara que pagasse e houve até quem ameaçasse de morte a pobre da Miriam que tratou de vender o que lhe coubera da herança que o pai deixara para poder saldar parte da dívida que o marido semeara pela cidade e cujos credores agora apareciam abanando apólices e talões e notas que Pedro não pagara ou cujo pagamento falsificara para embolsar o dinheiro que patrões e clientes lhe confiavam.
Um dia, porém, Carlos encontrou Miriam fazendo compras no supermercado. Sorriu e disse olá, Miriam, como vai. Conversou com ela como o amigo que fora e em dez minutos Miriam surpreendeu-se desarmada lembrando da escola no tempo da quinta série e esboçou um sorriso quando Carlos convidou-a para jantar. Ele disse seria um prazer reencontrar aquela menina que falou que eu estava ficando gordo e trocou o pão do meu lanche por uma maçã. Eu estava louca para provar o presunto do teu sanduíche, ela então sorriu e aceitou o convite sem pensar em mentir que aquela menina morrera.
Carlos rondara a casa de dona Maria enquanto Miriam se escondia e fora um bom amigo em não insistir em vê-la e houve um tempo em que disseram que ele era gay, posto que não cabiam em um homem aqueles jeitos tão gentis, o asseio no vestir mesmo em dias de semana e a solteirice que não buscava mulher para aplacar as ânsias que um homem de verdade deveria ter. Miriam no entanto não fermentava essas fofocas e ouvia-as em silêncio. Guardava na memória a amizade e pouco se lhe davam as preferências de Carlos, uma vez que desde que ela casara não falara mais com ele.
Agora que o vira concluiu que se enganavam. Era doce e sorriu-lhe com ternura e olhos calmos. E mesmo assim era homem para olhar-lhe na cara e convidá-la para jantar.
Miriam saiu do supermercado sem comprar nada. Andou até o centro e passeou pelo calçadão, lentamente, namorando as vitrines. Há muito tempo que não comprava roupas. Nem para os filhos, que trabalhavam e davam a seus armários o conteúdo que queriam.
Parou diante de uma loja e fitou uma manequim. Havia nela algo estranhamente mágico. Miriam sentiu que suas narinas dilataram-se e puxaram mais ar do que estava acostumada. Sorveu-o. Com delícia surpreendeu-o encher seus pulmões. E viu que aquilo era bom.
Entrou na loja e ao sair tinha as roupas cinzas que usava dentro de uma sacola.
A manequim da vitrine estava nua.
Miriam voltou para casa usando um lindo vestido amarelo.
Que brilhava.
Como o sol.
De um novo dia.

Meu herói


Meu filho tem doze anos e assiste impassível a um filme na tevê. Um garoto com poderes mágicos voa numa vassoura atrás de uma bola dourada com asas. Meu filho parece identificar-se com ele. Porém reparo em seu cabelo e uma espécie de corte moicano procura reproduzir o estilo de um jogador de futebol. É um cabelo igual ao de seus colegas da escola. E fui eu que o levei ao barbeiro e concordei com a ideia para não frustrá-lo. Meu filho quer ser jogador de futebol porque gosta de jogar bola e porque os jogadores ganham muito dinheiro.
Eu sou professor e minha esposa é bancária. Vivemos um casamento cheio de amor e não nos falta harmonia. No entanto quando olho para meu filho não sinto nele nenhum mistério. Há em seus olhos uma espécie de vazio, como se faltasse alguma coisa em seu olhar. São dois olhos redondos, grandes e bonitos e nada mais.
Eu jogo futebol com ele, agora menos do que quando ele era menor. Agora ele tem mais autonomia para fazer isso com seus amigos. Nós ainda andamos na mata desbravando trilhas e desviando das aranhas. Andamos de bicicleta e fazemos o dever de casa. Assistimos tevê juntos, esportes, filmes, notícias. Lemos revistas e livros e jornais. No apartamento em que moramos acumulamos uma bela biblioteca ampliada mensalmente. E no entanto meu filho tem olhos sonsos de um menino que não teve herói.
Um dia me disseram pobre do país que precisa de heróis e não sabiam o que estavam dizendo, porque pobre do menino que não tem heróis. Pois garotos que voam em vassouras não são heróis. Jogadores com gel no cabelo que recuam a bola para o goleiro não são heróis.
Meu herói surgiu em 1988. Eu tinha apenas seis anos mas ainda me lembro perfeitamente. Esta é, na verdade, minha primeira lembrança. Aconteceu em um domingo de manhã.
Eu acordei, limpei os olhos com os dedos e liguei a televisão. Minha mãe lavava a roupa lá fora, esfregando-a impetuosamente no tanque para depois estendê-la no varal sem perceber que eu já levantara.
Morávamos em uma casa pequena, paredes de alvenaria e chão de madeira, telhado de brasilit e banheiro externo. Tinha trinta metros quadrados, sala e cozinha numa peça apenas e dois quartos. Eu não tinha pai e meu irmão acordava tarde depois de uma noite dançando nos fandangos de sábado.
Na tela um homem de olhar sereno era focalizado pela câmera. Num movimento ele colocou uma coisa meio que de pano na cabeça, um capuz esquisito que disseram chamar-se balaclava, depois enfiou a cabeça no capacete apertado. Ajudaram-no a afivelar o cinto. Ele não estava na primeira posição de largada.
Tratava-se de uma corrida de automóveis que estava prestes a iniciar. Eu já assistira a algumas delas, talvez dezenas, mas nunca reparara exatamente em nada. Eu não era muito de reparar nas coisas. Eu não entendia bem o que acontecia a minha volta e eu não compreendia exatamente o que estavam mostrando na tevê. Só percebia que um tentava ultrapassar o outro para chegar primeiro.
Acontece que naquele dia eu finalmente enxerguei que não era só isso. Não se tratava apenas de vencer uma corrida. Não se tratava apenas de concluir uma etapa. Era mais que um esporte. E meu herói era mais que um homem.
Aparentemente um homem acelerou tudo o que podia e contornou curvas e apontou em retas e correu risco de bater em muros porque queria vencer. Porém não era só isso. Algo que me escapava no início da prova foi aos poucos ficando mais claro.
Eu era um garotinho raquítico com dentes semidesenvolvidos de rato, orelhas de abano e imensas de rato, barriga protuberante de vermes de rato, olhos redondos e grandes e inexpressivos de rato, jeito acanhado e tímido e assustado de rato. Minha professora da pré-escola dizia que eu não tinha condições de acompanhar a turma e que era melhor eu ficar mais um ano antes de ir para a primeira série. Eu voltava para casa da escola ao meio dia, a pé, caminhava três quilômetros em estrada de chão batido comendo a poeira levantada pelos carros, requentava a comida que minha mãe deixara pronta, almoçava em silêncio de frente para o meu irmão de catorze anos que chegara do trabalho e partiria novamente meia hora depois em sua bicicleta monareta, lavava a louça e depois passava a tarde vendo tevê sem prestar atenção aos filmes da sessão da tarde embasbacado com as imagens em preto e branco na tela de catorze polegadas.
Enquanto isso um homem se preparava para vencer corridas a mais de trezentos por hora por uma razão maior do que a vitória.
Naquele domingo, quando meu herói cruzou a linha de chegada, entendi que não era só isso.
Foi uma corrida difícil. Meu herói teve de ultrapassar muitos carros, superar a adversidade da chuva que para ele parecia não ser um problema e sim uma solução. Metros depois da chegada, parou o carro e pegou uma bandeira que lhe ofereciam. Eu conhecia aquela bandeira. Era a bandeira de um país que diziam que era o meu país, ainda que eu nunca o tivesse visto de verdade tampouco o país tivesse feito algo por mim. Mas não era só isso.
Enquanto meu herói dava uma volta inteira acenando a bandeira eu entendi que não era para as pessoas da arquibancada, não era para os cinegrafistas da tevê, não era para uma pátria inteira que ele erguia o punho com a bandeira apertada na mão. A bandeira era só um símbolo, uma abstração. Não significava o que era, e também não significava um país nem um povo. Ele balançou a bandeira para afastar a névoa de meus olhos e fazer-me ver.
Fazer-me ver que vencera por mim.
Porque meu herói sabia que em algum lugar um garotinho encolhia-se em si mesmo como um rato. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho olhava sem ver e não entendia. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho não tinha um herói. Meu herói sabia que em algum lugar um garotinho precisava que ele vencesse e acenasse uma bandeira como quem dissesse olha, garoto, eu venci, e foi por você.
Minha mãe entrou em casa e disse oi, filho, e eu disse oi, mãe. Quem ganhou a corrida, ela perguntou e eu ainda não sabia responder com um nome mas sentia que algo acontecera.
Demorou duas semanas para a próxima prova. Tempo suficiente para eu descobrir que não era só eu que assistira àquela corrida. Tinha muita gente acompanhando as vitórias de meu herói. Um país inteiro. Gente do mundo todo. Garotos de todas as idades de várias partes do mundo devem tê-lo visto naquele domingo. E no outro, duas semanas depois, quando novamente venceu. E devem ter acompanhado suas derrotas. A batida contra o muro quando liderava com folga. A derrapagem. A pane seca. Os problemas no motor. O furo do pneu. A batida contra o companheiro de equipe quando este o jogou para fora da corrida. A desclassificação injusta de uma prova que ele vencera no braço, na raça e na coragem, e que perdeu no tapetão.
E eu não me importava de dividir meu herói com toda essa gente. Porque ele era tão grande, tão valente, que cabia inteiro no coração de todo mundo sem deixar de ser meu herói. Gente de toda parte comemorava suas vitórias e lamentava suas derrotas. E eu sentia que suas vitórias eram por mim e que sua tristeza quando não vencia era porque sabia que não vencera por mim. E eu queria poder dizer-lhe que não precisava ficar triste porque eu estava aprendendo que a vida é assim.
O país vivia uma situação complicada, com miséria por toda a parte, desemprego, pessoas morrendo de fome e uma democracia que engatinhava depois de uma longa e violenta ditadura porque toda ditadura é violenta e mesmo que dure um dia já foi longa demais. Minha mãe trabalhava o dia inteiro e recebia um salário que mal dava para pagar a comida que punha na mesa, e que era limitada. Por isso meu irmão trabalhava, também o dia inteiro, para receber menos ainda. O país arrastava cem anos de atraso, com homens recebendo pouco, mulheres recebendo menos e adolescentes quase nada. Trabalhava-se praticamente de sol a sol e a escola terminava na quinta série, momento em que meu irmão abandonou os estudos.
Eu era de uma geração que brincava nas ruas com bola de meia, mas ninguém me escalava para o time. Eu era de uma geração que brincava de carrinhos de lata, mas eu os arrastava sempre sozinho. Eu era de uma geração que apanhava bergamotas no pé, mas eu não tinha amigos para ver quem cuspia a semente mais longe. Eu era de uma geração com sonhos e esperança de um país melhor, mas isso porque o país era uma merda.
O mundo, por sua vez, comemorava a queda do muro de Berlim. Eu não sabia o que isso significava, mas pensava como devia haver gente rica no mundo para que alguém pudesse construir um muro tão alto e tão grande em volta de uma propriedade tão imensa como um país inteiro.
Enquanto isso meu herói era quem passava mais perto dos muros em Mônaco. Houvesse chuva ou sol e independentemente da posição em que ele largava e de todos dizerem que não dava para passar em Mônaco, meu herói era sempre o favorito. Ninguém passava, mas ele passava. E quando um carro muito mais rápido e muito melhor do que o dele tentava passá-lo, não passava, porque meu herói sabia defender-se como ninguém.
Como alguém podia andar tão rápido numa pista tão estreita, eu me perguntava. E ele vencia. Mais tarde eu soube que, anos antes, com um carro muito inferior, sob uma bruta chuva, ele passou todo mundo e venceu mas a direção disse que interrompera a prova e que valia o resultado de uma volta antes. Meu herói sofreu com as injustiças e lutou contra elas. Estas lutas ele perdeu, porque não era bom de conversa, era bom na pista. Vencia como tinha que vencer. Com ele não tinha jeitinho. Com ele não tinha papinho mole. Era acelerar e vencer. E pronto. Simples assim. Regra é regra e vence quem chega na frente. Quem chega atrás tem que melhorar e tentar na próxima. E pronto. Meu herói não representava como nós que o amávamos éramos. Ele representava o que todos nós queríamos ser. Não queríamos imitar seu corte de cabelo ou seu jeito de vestir ou suas tatuagens que ele não tinha. Queríamos o seu jeito de olhar. Queríamos o seu jeito de ser.
Meu herói rivalizou com outros grandes pilotos. Que no entanto nunca se mostraram grandes homens. Eram apaixonados por carros e velocidade, mas não tinham aquele olhar. Meu herói tinha olhos serenos de quem sabe sua responsabilidade e precisa manter o foco para não me decepcionar. Seu olhar era suave e no entanto penetrante, concentrado, e dentro de sua cabeça ele fazia o traçado ideal diversas vezes para depois repeti-lo na pista.
Quando meu herói era um garoto ele foi mal em uma corrida de kart quando começou a chover. Depois disso, toda vez que chovia ele corria para treinar. Tornou-se destemido, venceu o medo da pista escorregadia e por isso era capaz de explorar além do limite a velocidade possível no molhado. Treinou tanto que quando chovia ele era imbatível.
Meu herói queria vencer, e eu sentia que ele precisava fazê-lo por mim. Era pelo meu sorriso gritado numa vibração desmedida que ele acelerava e passava e vencia a todos.
Contudo havia os carros. O poder dos carros. A tecnologia desenvolvida por outra equipe deixou meu herói para trás num ano. Exceto em Mônaco, onde ele venceu deixando um dos rivais mais de quarenta voltas atrás dele, enlouquecido tentando ultrapassá-lo. Mas meu herói não deu espaço e o leão não passou. Porque em Mônaco o que valia mesmo era o braço, a coragem, o coração.
Esta outra equipe vencedora tinha um dono numa cadeira de rodas e eu pensava como podia um homem numa cadeira de rodas desenvolver um carro tão veloz e imbatível. Meu herói queria correr com aquela equipe e em 1994 ele foi para lá. Meu herói já fora tricampeão mundial e eu tinha doze anos. Porém a federação internacional mudou o regulamento. Era a principal categoria do automobilismo mundial e o regulamento mudara proibindo as inovações tecnológicas que aquela equipe fizera e que lhe dera tanto poder.
O carro desta vez não era bom. Andava desequilibrado, saía de frente e de traseira. Tinha um comportamento imprevisível como o de um touro bravo. E meu herói precisava domá-lo para voltar a vencer. Para voltar a sacudir a bandeira e mostrar que vencera por mim.
Meu herói não entendia como uma outra equipe podia estar tão na frente e trabalhou muito junto com engenheiros e mecânicos para transformar seu carro num carro vencedor. Meu herói sabia fazer parte.
Perderam uma corrida. Duas. Três. O carro rodava nas curvas. O carro balançava nas retas. O carro não concluía as provas. E por mais que meu herói se esforçasse, as coisas não iam bem.
Serenamente, no entanto, meu herói foi explicando o que estava errado. Os engenheiros projetaram mudanças. Os mecânicos as realizaram. O chefe da equipe confiava no que meu herói dizia. Todos confiavam naquele olhar e nas suas palavras mansas.
Meu herói não brigava exceto por posições na pista. Meu herói não batia em ninguém, não gritava, não prometia dar comida aos pobres, não dizia que acabaria com a miséria, a opressão, a seca ou a enchente. Meu herói não voava pelo ar com capa vermelha nem capturava monstros terríveis nem bolas douradas com asas. Meu herói só andava de carro. Mas fazia-o de tal modo, com tanta garra e coragem e vontade de vencer que valia mais do que se voasse e me desse o pão que às vezes nos faltava. Ele alimentava meu espírito. Ele me dava um exemplo.
Nos treinos de sexta-feira um outro brasileiro bateu forte. Tão forte que foi proibido de correr novamente naquele fim de semana. No sábado um piloto que eu até então não conhecia, de uma equipe bem pequena que fechava o grid bateu forte e morreu. Meu herói olhou assustado. Anos antes ele parara no meio da pista para socorrer um piloto que batera. Desta vez, no entanto, não houve o que fazer. Foi estranho ver que se morria daquela maneira.
Meu herói concentrou-se como pôde e fez a pole position. Apesar disso, ninguém sabia se ele correria no domingo. Seu olhar estava diferente. Como podia alguém morrer assim, ele se perguntava. O que há de errado para que isso aconteça, ele devia estar questionando com os colegas. Devemos correr depois de um amigo esmagar-se contra um muro e morrer.
Antes da largada, havia medo em seus olhos e ao mesmo tempo um certo sentimento que não sei explicar. Pela primeira vez no ano ele liderava uma corrida. Dominara o touro bravo e aceleraria sobre seu dorso nas retas e curvas de Ímola.
E assim, liderando a prova, no lugar em que ele se sentia tão à vontade e pelo qual ele sempre lutava tanto para vencer por mim, meu herói perdeu o controle do carro por um motivo jamais descoberto, saiu da pista e ao bater contra o muro recebeu na cabeça o impacto de uma barra de suspensão que quebrou e voou contra ele liquefazendo seu cérebro.
Quando os médicos o retiraram do carro seu corpo estava tenso e de repente, ao ser posto no solo, relaxou. Naquele momento seu espírito libertou-se e por um instante eu o vi acenando e despedindo-se, desculpando-se por que não vencera por mim.
O país inteiro chorou comigo e acompanhou com as faces lavadas em pranto o cortejo que o conduziu ao cemitério. O mundo inteiro acompanhou pela tevê, com lágrimas igualmente tristes. Meninos de todas as partes choraram como eu, e eu não tive vergonha de engasgar-me em pranto e soluçar e encolher-me num canto da parede.
Meu herói foi sepultado com as honras e com o choro de um mundo inteiro, como deve ocorrer com os heróis.
Morreu naquele dia primeiro de maio de 1994.
Já faz tanto tempo. E as lágrimas ainda correm no meu rosto e os soluços ainda obstruem minha garganta, pois parece que foi ontem. E meu filho me olha sem susto nem compreensão. Sua mente não entende e não há nenhum mistério plantado em seu coração.
Meu herói é uma lembrança viva e uma saudade constante. Meu herói plantou dentro de mim uma semente, e deixou uma geração inteira órfã de seu exemplo, da alegria de suas vitórias e da tristeza de suas derrotas. E eu não me envergonho de ainda hoje chorar por ele.
Porque toda vez que as curvas da vida me jogam pra fora, me batem com um muro na cara, me põem a perder ou quando eu mesmo perco, lá vem ele, tantantan, tantantan, e a voz do narrador se ergue entusiasmada pela música ao fundo, na última volta, lá vem ele, na ponta dos dedos, de ponta a ponta, as últimas curvas, aponta na reta, não perde mais, Ayrton, Ayrton, Ayrton Senna do Brasiiiiil vence o Grande Prêmio, ergue o punho e balança a bandeira.
Meu herói venceu mais uma. Eu voltei por um instante a ser o menino que deixou de ser um rato vendo-o vencer. Meu herói venceu e ergueu a bandeira. E é por mim que ele a balança. Por mim, e por todos nós.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Matar um cão


Matar um cão nem sempre é uma tarefa fácil. Há várias circunstâncias que colaboram ou prejudicam o sacrifício do animal: tamanho do bixo, idade, peso, vitalidade, tamanho da enxada com a qual se bate em sua cabeça, horário da execução, força e precisão do golpe. É no entanto o dono do cachorro o fator determinante: quando o dono é desconhecido, em geral basta uma pancada; quando o dono é quem executa, a coisa se complica.
A primeira vez que tive consciência do sofrimento de um animal foi na infância, contava eu nove anos. Meu tio criava galinha e trouxe-me um pinto na palma da mão. Disse-me que era um pobre animalzinho aleijado e pediu-me que eu abreviasse seu sofrimento, pois ele não conseguiria sobreviver entre os pintos normais. Falou que tinha pena do bichinho e que não tinha coragem de matá-lo. Alcançou-mo e disse mata-o como achar melhor.
Eu o apanhei de sua mão com todo o cuidado. Analisei suas patas fraturadas e detive-me em seus olhos que me fitavam de um modo bastante singular, como nunca alguém me havia fitado antes. Sua plumagem era macia, de um amarelo claro, e seu bico piava a intervalos regulares um piu discreto e triste. Entendi que ele sofria e que, conforme dissera meu tio, que se retirara, meu gesto seria piedoso, um favor que eu faria àquela pequenina ave.
Ergui-o acima de minha cabeça, estiquei o braço e lancei-o contra o solo o mais violentamente que pude. O pintinho estalou no chão e morreu.
Antes disso eu judiara de moscas como todo menino normal. Capturava-as com uma armadilha muito simples feita com um saco plástico, água e açúcar, ou usava minhas próprias mãos em concha para surpreendê-las pousadas sobre a mesa. Eu as mantinha em saquinhos transparentes e experimentava diversas brincadeiras, vulgarmente classificadas como torturas: de umas arrancava as asas, de outras além das asas retirava as pernas, às vezes duas fazendo-as quadrúpedes, às vezes quatro tornando-as bípedes. A estas todas eu libertava para analisar seu comportamento e estudar o quanto viviam sem asas, andando pelo chão. Mas logo me enjoava e matava-as com uma chinelada.
Um dia capturei uma dezena de moscas e projetei um inusitado avião. Com um palito de picolé fiz o corpo da aeronave e com o outro atravessado em cruz sobre aquele montei as asas. Sobre estas colei as moscas, cinco de cada lado. Eu calculava que era o número suficiente para fazer o avião decolar. Tendo-as fixado liberei o avião, que eu prendera à mesa com fita adesiva. As moscas bateram as asas e o brinquedo subiu desajeitado, pendendo ora para um ora para outro lado. Diverti-me com o descompasso e em seguida frustrei-me com a falta que a persistência fazia às moscas, que em seguida arrefeceram e fizeram o avião estatelar-se no chão. Algumas ainda tentaram voar mas logo todas se puseram prostradas. Repreendi-as com severidade e puni-as esmagando-as sob meu pé, partindo o avião em pedaços.
Depois das moscas ofereceram-me o pinto. Matei-o sem convicção, e à noite ponderei que eu podia tê-lo salvo se me oferecesse para alimentá-lo, retirando-o do convívio com os outros pintos, os quais sem dúvida o matariam ou o levariam à morte por não lhe permitir chegar à comida nem à água. Foi muito diverso o que senti ao ver o primeiro cão atropelado que matei.
Minha casa ficava em uma baixada, numa esquina com fluxo intenso de veículos e habitada por muitos cães vadios, abandonados em uma mata próxima e que, famintos, vasculhavam as lixeiras da região. Nos finais de semana os carros passavam mais depressa do que o habitual, conduzidos por motoristas em geral abastecidos por cervejas. Dessa combinação resultavam constantes atropelamentos. Dos cães.
Era sábado à noite e ouvi um estrondo. Abri a porta e vi algo peludo estirado no meio da rua. Hesitei mas saí para ver o que era. Aproximei-me e vi um cãozinho vira-latas deitado de lado somente com três patas. Olhei em volta e vi que a quarta fora de fato arrancada e rolara até a calçada. O bichinho estava contudo vivo, calado, procurando-me com os olhos. Sua respiração estava rápida mas ele não ofegava, via-se apenas sua barriga inflar enchendo-se de ar e esvaziando-se bruscamente.
Muitos cães eram atropelados e saíam gritando e correndo. Estes curavam-se sozinhos e logo se os via saltitando pelas ruas, revirando latas e roendo lixo. Aqueles que ficavam parados em silêncio no asfalto, contudo, não tinham outro jeito senão serem mortos.
Andei de volta para casa e peguei a enxada. Caminhei até o cãozinho, arremessei a ferramenta até o terreno baldio do outro lado da rua e voltei para conduzir o animal até o local de seu sacrifício. Retirei-o do meio da rua para que eu próprio não sofresse destino semelhante ao seu. Quando peguei-o, embora tenha-o feito cuidadosamente, ele gritou um ai ai ai carregado de dor. Controlou-se porém e engoliu o sofrimento, aceitando-se ser carregado até o outro lado da rua.
Posicionei-lhe numa pequena elevação do terreno, pus sua cabeça recostada em um montículo de grama e acariciei-lhe suavemente entre as orelhas. Peguei a enxada e golpeei sua cabeça com uma pancada desferida velozmente e com toda a força que eu era capaz de alcançar aos dez anos. Fi-lo de modo preciso, acertando-lhe bem entre os olhos. Seu crânio partiu-se, como pude avaliar pelo barulho, mas sua pele não rasgou, de modo que ele não sangrou mais do que sangrara com a perda da perna.
Nunca entendi como uma pessoa pode fazer algo tão brutal quanto abandonar seu cãozinho de estimação. Os donos chegavam de carro com o bicho num saco escuro, abriam a porta do veículo e atiravam o bicho para fora, com saco e tudo. O cachorro esforçava-se para libertar-se e, quando o fazia, sentava-se num ponto da calçada e punha-se a esperar. Sem dúvida pensava que não poderia sair dali, sob pena de o dono não o encontrar quando voltasse para buscá-lo, uma vez que nenhum cão pode acreditar ter sido abandonado. Certamente eles pensam que o dono distraiu-se e deixou que o saco onde o carregava caísse do veículo. Ou pensam que se trata de uma brincadeira. Alguns imaginam que a brincadeira seja encontrar o dono ou o caminho de volta para casa e se põem a farejar e correr atrás da pista.
Era muito triste ver os outros, aqueles que ficavam parados, olhando com olhos tristes em redor, paralisados pela estranheza e postos em movimento somente quando a fome lhes impunha partir em busca de comida. Eu os via definhar nas primeiras semanas, emagrecendo e baixando a cabeça, arrastando as orelhas pelo chão. Até que, talvez por serem cães, davam a volta por cima e se punham altivos, formavam grupos, desbravavam novos lugares atrás de lixeiras a latir para outros cães.
Eu tinha nesta época um cãozinho de porte médio chamado Pateta. O nome indicava sua condição intelectual desfavorecida e seu atabalhoamento. Ele não aprendia nada do que eu lhe ensinava e ainda se mostrava desengonçado. Por isso eu o mantinha atado e só saía para passear com ele preso à guia. Porém um dia ele soltou-se e foi atropelado.
Seus ferimentos no entanto não foram graves e eu e minha mãe esforçamo-nos para curar-lhe as feridas. Não houve fraturas nem amputações. Com pomadas e um spray roxo barato deixamo-lo novo em três semanas. Mas o atropelamento seguinte era questão de tempo. Reforcei sua corrente e coleira e evitei-o por mais de um ano, tempo ao cabo do qual um automóvel partiu-lhe a espinha.
Recolhi meu cãozinho do asfalto onde ele choramingava baixinho. Pu-lo sobre um cobertor e acariciei-lhe enquanto se acalmava. Esperei que ele serenasse e avaliei a gravidade de sua lesão. Minha mãe disse entre lágrimas que ele tinha a coluna fraturada. Eu respondi que aguardaria até o dia seguinte para confirmar se não era impressão apenas e se não havia a possibilidade de o meu cachorrinho viver.
Era uma época em que os veterinários não eram encontrados em cada esquina, e mesmo que os houvesse aos milhões a pobreza de minha mãe não nos permitiria pagar a consulta nem o tratamento. Todos se relacionavam com os animais segundo a cultura da interrupção do sofrimento por meio do sacrifício.
Foi a isso que tive de me render no dia seguinte, arrependido de tê-lo deixado sofrendo a noite toda. Pateta continuava deitado na mesma posição e me olhava com seus olhos úmidos, suplicantes. Aqueles mesmos olhos das vítimas anteriores, redondos, brilhando envoltos numa película de tristeza, implorando ajuda em silêncio. A maldição não são os gritos ou uivos da pancada, o terrível mesmo é o olhar que nos dirigem aqueles que reconhecem sua condição irremediável e suplicam que se lhes abrevie o sofrimento.
Precisei bater três vezes na cabeça do Pateta para certificar-me de que o matara e que não lhe impusera um sofrimento ainda maior. Enterrei-o mais profundamente que os outros cães que eu matara, talvez para sepultar junto com ele o meu sofrimento por sua perda. Quando voltei para casa, juntei minhas lágrimas às de minha mãe e abracei-a ainda sujo de terra, soluçando como a criança que eu era. Pedi-lhe que nunca mais tivéssemos um cachorro porque nunca mais eu queria matar nenhum bicho.
Mas meses depois um outro vira-latas já morava na casinha que fora do meu querido e fiel amigo. Era preto como o outro e com a pelagem lisa e brilhante. Ao contrário daquele, porém, o Sheidi era esperto e coordenava muito bem seus movimentos. A primeira coisa que lhe ensinei foi que não podia ir na rua sem mim.
Amarrava-o cuidadosamente, mas não podia contar com o azar de, se ele se soltasse, ter o mesmo destino do Pateta. Sheidi aprendeu tão bem que a primeira coisa que fez ao soltar-se pela primeira vez foi arranhar a porta de casa e latir me chamando para brincar. Mimei-o muito parabenizando-o, enchendo-lhe a boca de guloseimas caninas, restos de carne e ossos do almoço.
Sheidi viveu seis anos. Neste meio tempo, tive de matar um cão grande, o maior que já sacrifiquei. Era um vira-latas marrom de uns trinta quilos, cabeça grande e sem rabo. Parecia até de raça, mas não devia ser por estar perdido num domingo à noite.
Escutei o barulho do atropelamento e, pelo volume, imaginei que pudesse ter sido uma pessoa. Enganei-me, porém. Sentado na calçada diante da minha casa o cachorro olhava na minha direção. Estranhei. Permaneci fitando-o por alguns instantes e reconheci nos seus olhos o que sua atitude contrariava. Desci as escadas e dirigi-me até ele. Parei diante do bicho e ele permaneceu imóvel, olhando-me com aqueles malditos olhos suplicantes, redondamente úmidos por aquela comovente tristeza.
Abaixei-me para vê-lo mais de perto, e foi então que percebi que suas patas traseiras estavam posicionadas de um modo estranho. O motivo, como pude concluir depois de dar a volta, era uma torção em sua coluna. O cachorro fora partido ao meio e sua espinha girara noventa graus. Olhei para sua cabeça e avaliei que minha enxada era muito leve para matá-lo.
Um dos vizinhos saiu de casa e veio ver o que se passava. Expliquei-lhe a situação e perguntei se ele não poderia ajudar-me a matar o animal. Ele respondeu-me deixa que ele morre sozinho, do jeito que está amanhecerá morto. Eu respondi-lhe que não deixaria o cão sofrer a noite inteira e que daria um jeito na situação sem a ajuda dele. Ele deu as costas e voltou para sua televisão.
Fui até o outro vizinho e bati na porta de sua casa. Perguntei você não tem aí um machado para me emprestar, um cachorro grande foi atropelado e eu preciso de uma coisa pesada para sacrificá-lo. Tenho, tenho sim, respondeu ele indo apressadamente buscar a ferramenta. Toma, pega, eu vou junto contigo.
Era um homem de uns quarenta anos, com mulher e duas filhas. Acompanhou-me até perto do cão, o qual arrastou-se dois passos em nossa direção. É, não tem jeito, tem que matar, mas ele é grande, disse ele. Você não quer fazer isso, perguntei. Não, eu não, se tu não consegue vamos deixar ele aí que até amanhã ele vai ter morrido. Não, não vou deixá-lo aqui sofrendo.
Caminhei até o outro lado da rua e acompanhei a penosa travessia do cão, que se arrastou até mim com a força que lhe restava nas patas dianteiras. Empunhei firmemente o machado e levantei-o. O cão manteve o olhar fixo em meus olhos, com o mesmo ar suplicante. Suspendi o gesto e ele fechou os olhos, dando-me coragem para concluir o movimento.
Desferi o golpe com a parte de trás do machado e esmaguei-lhe o crânio. O bicho esticou-se no chão mas não morreu. Suas patas dianteiras retesaram-se e ele convulsionou. Bati-lhe novamente, agora na lateral da cabeça. Os espasmos continuaram e eu repeti o golpe uma, duas, três vezes, até me lembrar que talvez ele já estivesse morto e os movimentos eram apenas ácido lático eletrizado.
Abaixei-me e pus a mão em seu peito, suavemente, procurando sentir-lhe os batimentos do coração. Só percebi os músculos relaxando pouco a pouco até cessarem de todo seu movimento.
Meu vizinho aproximou-se e perguntou-me o que eu faria com o corpo do cachorro. Respondi-lhe que eu teria de cavar um buraco para enterrá-lo. Ele objetou que era um animal muito grande. Disse-lhe que não havia outra escolha, pois eu não iria deixá-lo apodrecendo a céu aberto.
Meu vizinho foi até sua casa e trouxe-nos um enxadão e uma pá. Cavamos um buraco bem profundo, depositamos o cachorro nele e fechamo-lo novamente. Agradeci a ajuda do vizinho e ele olhou-me bem nos olhos antes de dizer disponha, passe bem a noite, garoto.
Quando entrei em casa dirigi-me ao banheiro e, ao olhar-me no espelho, vi que teria de tomar um demorado banho para limpar todo o sangue que respingara em mim. Provavelmente enquanto eu erguia o machado para golpear novamente o cão, o sangue da própria ferramenta gotejou-me sobre a cabeça, e pequenas gotículas vermelhas pintavam o meu rosto e minhas roupas continham dezenas de pequenas manchas.
Durante o banho tentei limpar-me do sangue, da terra e sobretudo da imagem daqueles olhos que eu sabia serem capazes de enxergar no fundo de mim. Os olhos suplicantes úmidos da tristeza que implora pela morte para salvar-se de um sofrimento insuportável.
O fantasma daquele cão acompanhou-me por anos. Até o dia em que um carro atropelou o Sheidi.
Foi num sábado pela manhã. Eu ainda estava deitado quando ouvi um carro descendo o morro em alta velocidade e o estouro de um corpo que se partia sob suas rodas. Levantei-me com o coração saltando-me do peito e olhei pela janela para confirmar a sensação que me trespassava a alma: do outro lado da rua, encostado no meio-fio, estava o corpo do Sheidi deitado, próximo à cadelinha no cio que o fizera descumprir minhas ordens.
Antes mesmo de sair porta a fora eu já me engasgava com meu pranto. Corri desesperadamente ainda pensando que se eu fosse depressa poderia salvá-lo, custasse quanto custasse levá-lo ao veterinário.
Uma enorme mancha de sangue que voara de sua boca, grosso como eu nunca vira, freou-me os passos. Meu cachorrinho como que tossia sufocado e em desespero, expelindo uma baba vermelha. O carro passara com as rodas sobre sua barriga e esmagara-o.
Voltei correndo para casa e minha mãe perguntou-me chorando é o Sheidi? Respondi sim, é ele, já com a enxada na mão. Corri até ele, peguei-o nos braços e levei-o até o terreno baldio. Coloquei-o no chão e despedi-me dizendo adeus, meu amigo querido. Levantei rapidamente a enxada porque eu já me repreendia por estar fazendo-o esperar tanto pelo alívio de seu sofrimento. Acertei-lhe na cabeça e então aconteceu o que de pior já me aconteceu nesta vida: ele, que até então estivera com os olhos fechados, contorceu-se, virou o corpo, ergueu a cabeça e arregalou os olhos mui redondos para mim, cheios de angústia e medo. Eu solucei e reuni minhas forças para desferir-lhe um golpe ainda mais duro, disse numa voz aflita, sufocando-me, morre, Sheidi, por favor, morre, e outro, e outro, até enfim o derradeiro golpe entregá-lo à morte.
Parei extenuado, os braços caídos, a enxada largada no chão. Minha mãe assistiu a tudo da sacada, as mãos entrelaçadas lavadas em pranto.
Recompus-me com dificuldade, cavei um buraco e pu-lo lá dentro. Instalei a mangueira na torneira externa e lavei o sangue da rua.
Sei que fiz o que devia ser feito. Fiz-lhe a única coisa que podia para eliminar a sua dor. Mesmo assim estou aqui hoje, Sheidi, meu amigo querido, estou aqui hoje pedindo-lhe, pedindo perdão.

Primeira vez


Quando comprei meu carro tive a ingênua esperança de que, como em um passe de mágica, eu ficaria mais bonito. Acho que acontece com todo mundo, ou pelo menos com muita gente. O automóvel é um fetiche, e o homem que sai da concessionária dirigindo o seu, nunca tendo dirigido outro que não o da autoescola, tem que necessariamente sentir-se envaidecido, sob pena de não parecer humano.
Enganei-me, porém. É verdade que muitas pessoas vieram falar comigo, dizer ai que carro lindo, recomendar posto de combustível e tipo de gasolina, indicar local de lavagem etc. Mas o foco da questão era sempre o carro, não era eu. A ponto de as pessoas olharem apenas para o carro, inclinarem-se em reverência olhando de baixo pra cima e pondo-se na ponta dos pés para olhar por cima. As mãos ao lado do rosto e os olhos apertados para ver através dos vidros como era o interior. Eu abria a porta e esperava que as mulheres entrassem, sentassem e me convidassem para levá-las pela cidade numa voltinha.
Mas isso não aconteceu.
Os caras, ao contrário, até pediam para dirigir. Eu fazia que não tinha ouvido e dizia senta aí do lado do carona pra gente dar uma volta no Centro. Eles gabavam o interior e reclamavam que eu não acelerava. Acelera aí, dá umas arrancadas pra gente sentir o motor. Eu sorria e ignorava a tolice.
O cheiro do carro era muito agradável. O interior novinho exalava um odor realmente inebriante. Sei que andei por semanas com o nariz arrebitado ao volante, como se o assento do carro me impusesse um ar superior. A gasolina explodindo no motor inflava o meu ego e me punha alienado de mim mesmo, hipnotizado pelo poder metálico do automóvel.
Quando finalmente entendi que andar pelo Centro da cidade não faria cair uma mulher no meu colo nem no banco do carona, resolvi aderir à ideia de lançar-me a uma danceteria. Pensei em convidar algum amigo, mas desisti logo, pois como eu faria com a garota? Não. Era melhor ir sozinho para poder ficar mais à vontade com a gostosa que eu pegaria e levaria para o motel. Sim, porque eu não pensava em comê-la no banco do carro. Não era assim que eu pensara perder meu cabaço.
Eu não tinha mais nenhum sonho romântico de encontrar a mulher da minha vida, nem mesmo pensava em fazer amor com uma moça bonita e delicada com quem eu namoraria meses antes de nos deitarmos na cama dela, perfumada e macia, para uma noite de encantos e carinhos. Uma foda me satisfaria, e, contanto que não fosse com uma baranga horrível, uma mulher era o que bastava.
Fui para Lajeado no local onde, segundo informações, era fácil pegar mulher. Me disseram inclusive que lá as mulheres é que te pegavam. A ressalva era que não se tratava de meninas de dezessete aninhos, mas mulheres com mais de trinta e cinco. Melhor ainda, pensei, pois as ninfetas nunca me atraíram, sobretudo porque o que eu queria era mulher experiente, que não esperasse de mim nenhum enlevo e afeto que eu não estivesse disposto a oferecer.
O salão era amplo, com dois ambientes: um para dançar e ficar em volta conversando e bebendo, e um mais reservado, com mesinhas onde aqueles que quisessem descansar de ficar de pé e trovar sentados podiam satisfazer-se.
Havia muita gente. Estava lotado. Uma confusão de corpos, braços e pernas girando ao ritmo da banda. Não era música eletrônica, portanto o homem ou a mulher tinham que tirar a companhia para dançar e fazê-lo conforme era praxe nos tempos de antanho: braço esticado, o outro nas costas da mulher e ela no ombro dele, os corpos um diante do outro, umbigos bem próximos.
Comprei uma lata de cerveja, pu-la no copo e escondi-me atrás dele. Andei pelo salão desviando a custo dos outros. Dei uma volta completa, fitando com mais atenção algumas mulheres, fosse para olhá-las nos olhos, fosse para encarar suas bundas gostosas e peitos querendo estourar sob os decotes. Cada boazuda que, na segunda volta que eu dava, parei a um canto constrangido do volume que me crescia dentro das calças.
A chave do meu carro balançava no meu cinto, acintosamente pendurada. Eu, sem perceber, punha a mão na chave como se acariciasse minhas bolas, alisando-a com delicadeza e intenção, encarando ora uma loira ora uma morena. No entanto, a estratégia não me rendeu nenhum fruto, e aquela história de que ali as mulheres é que pegavam os homens não se confirmou. Pelo menos não para mim.
Flagrei alguns beijos gulosos entre casais que se apertavam cheios de ansiedade e desejo, e tive inveja deles.
Perambulei pelo salão e sentei-me no segundo ambiente, sozinho, com um resto de cerveja no copo de plástico. Embasbaquei-me por alguns minutos, olhando o movimento, vendo diante de mim pessoas cujas formas se misturavam, de variadas cores, todas elas envoltas num único cheiro de cigarro, suor e álcool.
Bebi o último gole de cerveja, quente. O sabor horrível concentrou-se na minha boca, fechei os olhos, fiz uma careta e engoli. O líquido caiu-me no estômago como um soco. Não contive um ah irritado. Súbito, levantei e pus-me a caminho da saída.
Andar pelo salão da danceteria fora tão produtivo quanto trafegar pelo Centro da cidade, com a diferença de que o êxito alheio daqueles que enfiavam suas línguas boca adentro das mulheres de trinta e cinco anos presentes na festa me enlouquecia. Alguns daqueles filhos da puta provariam os beijos de cinco, seis, até dez ou vinte daquelas mulheres, esfregariam seus corpos nelas e meteriam as mãos em suas bundas e peitos. No final da festa, comeriam a mais gostosa entre elas, apertariam suas carnes e enfiariam por entre suas pernas um pau latejante e sôfrego, vaidosos por ter se esfregado em várias outras sem contudo tê-las penetrado, pulsando de tesão mais por si mesmos do que por elas.
Antes de ir para casa dei uma volta pelo Centro. Passei por duas prostitutas feias e uma dúzia de travestis, mais bem arrumados e parecendo mais mulheres do que elas. Endireitei o volante depois de uma curva e tomei o rumo de casa.
Estacionei na garagem, entrei em casa e fui ao banheiro. Mijei uma urina espessa, amarela e espumosa como a cerveja que eu tomara. Sacudi meu pênis, murcho e decepcionado.
Mas ao deitar-me na cama, lembrei-me das mulheres da festa, dos beijos que flagrei, aquelas peles lisas rebrilhando regos entre peitos redondos e macios. Meu pau enrijeceu, logo ficou duro e pulsou dentro da cueca. Peguei-o, apertei-o em minha mão, livrei-me da roupa e puxei o prepúcio, iniciando um movimento agressivo de masturbação.
Bati uma punheta angustiada, os olhos fechados no escuro do quarto, com as imagens daquelas mulheres pipocando em minha cabeça. Gozei depressa e sem prazer. Detive o esperma com a mão em concha e logo a porra escorrendo entre meus dedos enojou-me. Levantei cuidando para não lambuzar o lençol e o cobertor. Limpei-me com minha própria cueca, fui ao banheiro lavar as mãos e joguei a roupa suja dentro da máquina de lavar.
Demorei para dormir. Acho que se passaram horas. Quando finalmente senti que o sono me abocava e envolvia, veio o sol, iluminou o dia e me despertou.
Fora a primeira das três tentativas que fiz de ficar com alguém em uma festa em danceteria. O primeiro dos três fracassos.
Andei por outros lugares: balneários, lagoas, praças, bares, lancherias, lojas, shoppings. Sempre com a chave à mostra mas incapaz de aproximar-me de alguém e entabular qualquer conversa. Fazia-o com minhas antigas amigas e colegas de trabalho ou de escola, mas estas pareciam incapazes de me enxergar ou perceber minhas insinuações. Eu me fiava na ideia de que alguém abriria espaço para mim com um sorriso, um gesto, ou mesmo viesse até mim, poupando-me deste trabalho.
Enganei-me.
Um dia visitou-me um ex-colega de trabalho. Ele era mais tímido e feio do que eu: ruim de matemática, nenhuma habilidade com as palavras, tanto na fala quanto na escrita, um nariz aquilino com um calombo no tabique, olhos claros mas inexpressivos, cabelos ralos e profundas entradas de careca precoce. E, para completar, meio vesgo, mais precisamente estrábico do olho esquerdo.
Sentou-se na cadeira que lhe estendi, eu animado com a visita dele, ele com um ar suspeito, um sorrisinho malicioso nos lábios. Eu olhei de lado, inclinando a cabeça e sorri perguntando o que é que tu andou aprontando.
Ele respondeu tá tão na cara assim, com voz baixa, sempre falando mais para si do que para os outros. Eu insisti fala logo, não vem me enrolar que esse teu ar de sem-vergonha não me engana. Estive em Porto Alegre terça passada, ele iniciou. Tu já ouviu falar do site vip luxúria, perguntou. Eu respondi que não e ele me explicou que era uma página com dezenas de acompanhantes, jeito chique de dizer dezenas de putas, as quais podiam ser escolhidas pelo cliente que, mediante ligação, agendava um programa. Ele retirou o notebook da pasta que trouxera, abriu-o e conectou-o à internet.
Eu acompanhei sua narrativa meio boquiaberto, com um sorriso desconfortável nos lábios. Quando a página abriu, ele virou a tela para mim e disse esse é o site. Aqui você clica para ver as mulheres, aparece a foto e, se você clicar em uma delas, abrem outras fotos e o perfil delas, incluindo medidas e o que elas fazem, se topam sexo oral, anal, orgias etc. Eu escolhi uma morena, o nome dela era Éllen, tinha uns peitões e uma bunda bem gostosa. E o que vocês fizeram, eu perguntei com o sangue fervilhando e o pau crescendo. A gente foi num motel, ela foi super atenciosa, bem querida, tirou a minha roupa e me fez um boquete. Depois tirou a roupa, deitou na cama e se virou, ficou de quatro, empinou bem a bunda e disse vem, me fode gostoso. Eu comi ela de tudo quanto foi jeito, mas acho que tive um problema e não gozei. Ela insistiu, me chupou, até me deu o cuzinho, dizendo que abriria uma exceção para mim, que ela não costumava fazer isso sem cobrar um extra. Mas não adiantou. Ela pareceu meio frustrada, mas quando terminou a hora vestiu-se, pegou o dinheiro e me pediu para levá-la de volta.
E quanto custou, perguntei. Só ela custou duzentos, mais o motel, o táxi e o ônibus. Dá uma olhada, e clicou sobre a foto da Éllen. As outras fotos apareceram, ela nuinha e em poses sensuais. Era bem gostosa mesmo. Valia cada centavo. Fixei o olhar na bunda dela e pensei não acredito que esse bosta enfiou o pau aí dentro e não gozou.
Conversamos por mais uma hora e eu fiquei com o computador clicando nas fotos das outras, pensando qual delas seria minha. Ao final levei-o para casa no meu carro e ele disse que valia a pena. Estava só esperando juntar um dinheiro para ir de novo, com outra, experimentar uma loira que ele até já escolhera.
Eu não falei nada, nem que ia fazer o mesmo nem que não. À noite, sentado assistindo TV, eu não conseguia me concentrar em nada além do fato de que ele, ao contrário de mim, já não era mais virgem. Não conseguia tirar da cabeça a imagem dele pelado enfiando-se dentro daquela morena, penetrando sua buceta depois da boca úmida dela ter chupado seu pau, e por último ela dizendo mete no meu cuzinho que eu vou abrir uma exceção pra ti porque eu quero te sentir gozar dentro da minha bunda. Ai, meu deus, isso não era justo.
Levantei-me de súbito, peguei a chave do carro e fui para o Centro, determinado a achar uma prostituta e perder a porra desse cabaço que estava me deixando louco.
As voltas que dei foram muitas. Fiquei andando em círculos, contornando quadras com o coração disparado, a cabeça doendo, os pensamentos trespassando-me como facas afiadas, piscando em flashes desconexos. Eu estava nervoso, sentia as mãos excessivamente firmes apertando o volante, os braços meio trêmulos, eu inteiro agarrado naquela ideia, subitamente ensandecido, obcecado.
Meus olhos iam e vinham conferindo os retrovisores, temeroso de que algum conhecido estivesse na minha retaguarda e percebesse o que eu estava querendo.
Os travestis acenavam, gritavam e balançavam as tetas de silicone expostas como troféus. Eles não me interessavam, ainda que tivessem uma aparência melhor que a das putas. Passei por três delas. Duas morenas e uma loira, pela qual me interessei. Desacelerei o carro e passei perto dela olhando-a fixamente, de cima a baixo, mas concentrando-me no rosto, cujo aspecto seria conclusivo. Ela empinou a bunda e fez cara de safada, sensualizando com a língua espichada lambendo os lábios.
Não parei. Virei à direita e na próxima esquina novamente à direita, e de novo à direita. Passei por ela três vezes antes de parar. Conferi os espelhos para certificar-me de que nenhum outro carro se aproximava. Eram onze e meia da noite.
Abri o vidro do lado do carona e ela imediatamente se encurvou metendo a cara para dentro numa pose que arreganhava o decote, o qual, no entanto, revelava peitos nanicos, só uns bicos metidos sobre um caroço de gordura.
Oi, gato, tá a fim dum programa gostoso. Queque cê faz, eu perguntei. Tudo, só não faço anal.
Era uma restrição inoportuna, mas eu não queria comer a bunda flácida dela. Se fosse um cu o meu desejo, valeria a pena pagar por um traveco de bundinha dura, e não aquela puta sem massa muscular nem carne nas ancas. Mas o que eu queria era uma mulher, uma buceta para enfiar meu pau enterrando-o até as bolas numa carne úmida.
E quanto é, questionei. Cinquenta, ela disse. E onde a gente pode ir. Ela me respondeu indicando um local que eu não conhecia e, pelo nome, não era nada confiável. Perguntei se tudo bem se fôssemos no Cascata. Ela disse que tudo bem. Destravei a porta e deixei-a entrar.
Ela sentou-se de lado, olhando para mim. Passou a mão na minha coxa e eu disse não, que esperasse chegarmos ao motel. Ela disse tudo bem com uma voz contrariada e endireitou-se no banco. Ainda tentou entabular uma conversa, mas eu não lhe dei atenção. Sentia-me muito ansioso. Meu nervosismo bloqueava meus pensamentos e minha voz saía entrecortada. Eu estava eletrizado. Só conseguia pensar que me livraria de um peso, um fardo, uma cruz, e tentava tranquilizar-me pensando que logo tudo ficaria bem.
Subi a pequena rampa que dava acesso ao motel, parei o carro e pedi um quarto. O recepcionista disse número dezoito e eu pensei que seria a entrada para minha maioridade. Estacionei, olhei a puta ao meu lado e disse vamos.
Fiz a gentileza de deixá-la subir na frente. O quarto ficava no segundo andar, sobre a garagem. Aproveitei para olhar por baixo de sua sainha e espiar sua bunda, dividida por uma calcinha vermelha atochada entre as nádegas.
O quarto tinha uma cama de casal, alguns espelhos e foi só o que eu vi. A roupa de cama era branca, o que me alegrou por parecer higiênico.
Ela perguntou você não vai tirar a roupa. Eu disse não, quero que você tire primeiro. Fi-lo porque me dei conta que eu estava nervoso e mole. Mesmo imaginando-a nua dali a instantes rebolando enquanto eu a penetraria, não me excitei.
Ela se despiu de maneira sensual, fazendo um strip diante de mim, ajoelhada na cama. Eu permaneci de pé. Ajeitei meu pênis enfiando a mão dentro das calças. Ela aproximou-se, desceu da cama, ajoelhou, baixou minha calça até o tornozelo e lambeu minha pica, umedecendo-a com a saliva e apalpando minhas bolas. Abocanhou-a inteira enchendo a boca. Senti que o sangue afluía endurecendo meu pau. Alcancei a camisinha e disse coloca pra mim. Ela abriu a embalagem, pôs a ponta na boca, entre os lábios, e colocou o preservativo no meu pênis semiendurecido.
Ela serpenteou para cima da cama e pôs-se de quatro na beirada do colchão. A seguir, abaixou a cabeça e empinou a bunda meio flácida, os peitos uma tábua com dois bicos mordidos roçando o lençol, o rego escuro entre as nádegas em cujo meio o cu se apertava fechadinho e eu, pegando-a pela cintura, dando três bombeadas antes de ejacular e encher de porra a camisinha, sem nem ao menos ter completado a ereção, o pau mais mole do que duro.
Tirei-me de dentro dela, despi a camisinha com pressa de levantar as calças e livrar-me da sensação de ridículo que se apoderara de mim. Andei até o banheiro e num acesso de limpeza enrolei metodicamente o preservativo no papel higiênico e lancei-o no lixo. Lavei as mãos esfregando-as com força. A prostituta veio até perto de mim, ainda nua, molhou a mão, ensaboou-a e esfregou a buceta. Depois secou-se e voltou para perto da cama, onde catou suas roupas e vestiu-se.
Ela ainda abriu o frigobar e disse vou pegar uma cerveja, você não vai me negar uma cerveja, vai? Eu disse tudo bem, pode pegar, mas agora vamos embora. Eu te deixo onde? Na esquina onde eu tava, ela respondeu com um tom de voz levemente irritado com a pergunta óbvia que eu fizera. Acrescentou que o pagamento devia ser feito ali, eu cobro antes de a gente ir embora. Abri a carteira e tirei os cinquenta reais que combináramos.
Paguei a conta do motel, outros cinquenta, e andei o mais depressa que pude. Ela disse ui, tá com pressa, e eu não respondi, o olhar vidrado na estrada diante de mim. Olhei em todos os retrovisores e me tranquilizei porque não havia ninguém atrás de nós. Parei o carro, ela disse adeusinho então, até a próxima.
Acelerei e voltei pra casa no mesmo estado catatônico em que saíra. Entrei no banheiro, pelei-me, ensaquei as roupas e decidi atirá-las para fora de casa assim que eu terminasse aquele banho longo e quente, demorado e reconfortante que o ruído do chuveiro indicava ter apenas começado.